O Globo |
31/7/2008 |
Há cinco anos, por ocasião da reunião da Organização Mundial do Comércio em Cancún, no México - que paralisou as negociações da Rodada de Doha para liberalização do comércio internacional devido a um impasse que colocou o recém-criado G-20, grupo de países emergentes à época liderado pelo Brasil, em contraposição a Estados Unidos, Japão e União Européia -, o presidente Lula disse que havíamos dado "uma trucada neles", utilizando-se do "truco", um jogo popular de cartas, para se vangloriar de que os emergentes haviam enfrentado com êxito os "países ricos". Desta vez, quem levou "uma trucada" da China, e principalmente da Índia, fomos nós, teoricamente seus parceiros, mas que estávamos do outro lado da mesa, com os "países ricos", na negociação da agricultura. O problema é que a coesão do G-20 só se dá por razões que não são as do comércio. Na hora da negociação propriamente dita, porém, a ideologia não prevalece. O G-20 mostrou-se útil na retórica, mas em matéria de troca, de benefícios e obrigações, não funciona. A estratégia deu certo até o momento em que o G-20 representava uma resistência para a abertura em produtos industriais. A China só se sentiu à vontade no G-20 enquanto ele era um bastião contra a negociação. Da mesma forma, o Brasil utilizou-se do G-20 para forçar uma proposta dos Estados Unidos e União Européia. Mas, nossa ambição era diferente da ambição da China ou da Índia. O que impede a negociação é a proteção, nesse caso à agricultura familiar na Índia e na China. Não adianta não ter subsídios, mas ter restrições comerciais. Como se soube desde sempre, dentro do G-20 não há um consenso básico em matéria de agricultura para poder negociar, por uma razão simples: a agricultura está longe de ser um tema norte-sul. A Índia está protegendo seus pequenos agricultores porque eles não têm produtividade para competir, assim como a União Européia protege os seus agricultores pela mesma razão. E o competidor, em grande parte das vezes, é o agronegócio brasileiro. A redução dos subsídios dos Estados Unidos é pequena, chega a ser uma garantia de que eles poderão dobrar os subsídios que atualmente impõem, mas o valor final é menor do que o que o Congresso americano aprovou. O que estava em jogo era o espírito multilateral, e a abertura para mais acesso, mesmo que não a ideal. Mas, a discussão sempre esteve contaminada por um tipo de pensamento que não leva a mais multilateralismo, mas que reflete uma realidade política. Segundo Marcílio Marques Moreira, ex- embaixador em Washington e ex- ministro da Fazenda, essa realidade transformou a China na "fábrica do mundo", a Índia no seu "escritório" (laboratório ou call-center são alternativas de descrição), os Estados Unidos, o maior importador e gerador do maior déficit comercial (em torno de US$800 bilhões), no "shopping center do mundo", e o Brasil na "fazenda do mundo". E poucos interesses comuns existem entre os representantes dos emergentes. O que divide não é o subsídio, mas sim o acesso: nem a Índia nem a China querem dar acesso, nem agrícola nem industrial, mas se interessam em ampliar o acesso a seus produtos. À China interessa um acesso mais amplo possível a seus produtos industriais e foi por isso que ela desdobrou esforços para entrar na Organização Mundial do Comércio. Mas acham que já cederam tudo que poderiam ceder, e a rigidez é total. Paradoxalmente, a entrada da China na OMC acabou atrapalhando o livre comércio, pois no organismo as decisões são tomadas por consenso. À Índia interessa abertura plena na área de serviços. Marcílio Marques Moreira lembra que "o offshoring de serviços para a Índia tornou-se tema de grande repercussão política nos Estados Unidos". Nesse caso atual, o fracasso se deu na falta de entendimento entre China e Índia de um lado e Estados Unidos do outro em torno do montante de uma salvaguarda agrícola, que poderia permitir a esses países, que já são potências emergentes mas quando interessa posam de pobres, aplicar restrições excessivas no caso do aumento das importações. Isso num momento em que é preciso dinamizar o comércio de alimentos para atender às necessidades justamente dos "países pobres". A situação é tão contrastante que é possível que Índia ou China sejam obrigadas até a reduzir suas tarifas em caso de escassez de algum alimento. O chanceler Celso Amorim deixou para americanos e indianos decidirem, e se eles tivessem chegado a um acordo, ele seria crucificado pela nossa agricultura, que tudo o que não quer é mais restrição, ou perspectiva disso. Nesse aspecto, o fracasso foi até positivo, foi uma sorte para o Brasil que não tenham chegado a um acordo de salvaguardas, comentam especialistas que acompanharam as negociações. Marcílio Marques Moreira dá um exemplo da mudança no mundo, que está mais complexo do que a simples disputa entre "ricos e pobres". Ele se lembra de uma reunião da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), em Genebra em 1964, onde "o eloqüente delegado cubano era Che Guevara", na qual dois temas dominavam os debates: os preços relativos entre produtos industriais produzidos pelos "ricos" e as matérias-primas produzidas pelos "pobres"; e a premência de serem aumentados os fluxos de capital dos "ricos" para os "pobres". Hoje, os termos de intercâmbio foram invertidos, com as commodities puxando os preços para cima, a ponto de aquecer uma inflação mundial, com os "pobres" tornando-se grandes exportadores de produtos industriais e importadores de commodities. Quanto aos fluxos de capitais, são os "pobres" como países do Oriente Médio, o Japão e a Rússia, com a China e seu US$1,8 trilhão de reservas na vanguarda, que hoje financiam os "ricos", especialmente os Estados Unidos. Até o termo matéria-prima caiu em desuso. |
Entrevista:O Estado inteligente
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