PANORAMA ECONÔMICO |
O Globo |
31/7/2008 |
Este será conhecido como um dos momentos de insensatez da Humanidade. Diante de um mercado agrícola em crise, com preços disparados, produção insuficiente, risco de fome, o mundo fracassou em abrir os mercados e reduzir o custo do comércio de produtos agrícolas. A Rodada Doha foi comparada por Pascal Lamy, da OMC, com uma catedral em que os avanços foram erguendo as paredes. Uma parede importante da catedral subiu quando os países ricos concordaram em acabar com o maior absurdo do distorcido mercado agrícola: os subsídios às exportações. Pelo texto do finado acordo, o dinheiro dado na mão do exportador acabaria em 2013. O subsídio à produção também cairia nos países ricos, e a Europa derrubaria suas tarifas à importação de agrícolas. O que acontecerá com esses avanços? É o que um desconsolado Pascal Lamy pretende responder com o texto que tenta fazer com os salvados do incêndio. Os riscos agora são de uma guerra comercial. Vários contenciosos ficaram congelados à espera do fim da rodada. Um deles é a briga, que vem do governo passado, na qual o Brasil venceu os Estados Unidos em todas as instâncias, contra o subsídio do algodão. Agora o país tem o direito de retaliar caso os EUA não mudem o subsídio, considerado contra as regras do comércio internacional. Há riscos de uma nova onda protecionista. O candidato do Partido Democrata, Barack Obama, é descrito pelo "Wall Street Journal" como um cético em relação ao livre comércio. O candidato elogiado neste quesito é John McCain. É bom lembrar, no entanto, que o famoso liberalismo comercial dos republicanos não deu o ar de sua graça no governo Bush, que sequer reduziu a absurda sobretaxa ao álcool brasileiro. Esta rodada trouxe novidades, e nós fomos uma delas. O Brasil, pela força do setor agrícola - segundo maior fornecedor de soja, o primeiro de carnes, café, frango, açúcar, e pelo potencial de aumentar sua presença -, passou a ser um negociador importante. A China e a Índia também emergiram como importantes negociadores. No final, as diferenças entre o Brasil e elas prevaleceram. Há muitos derrotados. Na primeira fileira, estão os presidentes Bush e Lula. Em 2003, eles tinham diante de si várias avenidas: Alca, Doha, acordos bilaterais. E o Brasil ainda tinha o fortalecimento do Mercosul. Bush e Lula tinham as duas presidências das negociações da Alca, e trabalharam para miná-la, cedendo às pressões ideológicas ou protecionistas. O negociador do Brasil chegou a chamar a Alca de "dançarina de cabaré barato". A idéia brasileira era priorizar Doha, na qual o país teria conseguido liderar um grupo da elite dos emergentes. Bush, em fim de governo, não tem nada a apresentar nesta área, a não ser um acordo com o Peru e dois magros acordos bilaterais, com o Panamá e a Colômbia, que estão sendo bombardeados no Congresso. Lula é pior porque, além de não ter acordos bilaterais relevantes, ficou sem Alca, sem Doha e o Mercosul não só não avançou como ameaça retroceder. Para fazer acordos bilaterais - ficou mais claro ainda esta semana -, o Brasil terá que se distanciar da Argentina, que bloqueará qualquer avanço nessa área. E a pretensão de liderar os emergentes na guerra santa contra os "ricos e maus" naufragou quando chegou a hora da verdade. Índia e China quiseram proteger seus mercados agrícolas; Índia e Argentina se recusaram a fazer concessões na área industrial. O Brasil não tem plano B e precisa de um para este vácuo após o fracasso de Doha. O multilateralismo não morreu, claro. Há 60 anos, em negociações penosas como esta, o comércio livre tem avançado. Mas enquanto outra porta multilateral não se abre, é necessário traçar uma estratégia. Negociar acordos bilaterais com Europa e Estados Unidos é a providência mais imediata. O Brasil tem a propor acesso a mercado na área industrial, já que, em Doha, chegou a aceitar a redução de 56% das tarifas em troca de mais acesso para produtos agrícolas. O problema será a Argentina, pois, se negociar em separado, sepultará o bloco; se negociar com o Mercosul, as conversas andarão com o freio de mão puxado. Outro importante passo seria fazer um grande esforço de modernização dos padrões ambientais e trabalhistas da agricultura brasileira. Para isso, seria necessário um ministro da Agricultura que entendesse que defender a agricultura não é ser cúmplice dos maus produtores, mas, sim, aliar-se aos mais modernos e elevar o padrão e as exigências. O Brasil é eficiente produtor; ninguém nega. Porém, esta semana mesmo, o que vemos? Um pecuarista brigando na Justiça pela propriedade de um rebanho que ele, criminosamente, criava numa Estação Biológica da Amazônia. Se os produtores brasileiros não respeitarem os modernos padrões trabalhistas e ambientais; não montarem sistemas de rastreabilidade para comprovar sanidade do rebanho, qualidade do produto, forma de produção, região do plantio; a agricultura brasileira enfrentará dificuldades. Protecionistas ou não, os mercados passarão a exigir certificados de sustentabilidade que a maioria dos produtores brasileiros não tem condições de apresentar. É a hora de a agricultura fazer o dever de casa, pois o jogo vai ficar mais pesado. E saiba a indústria brasileira que a redução das tarifas de importação virá. É só questão de tempo. Que se prepare para mais competição. |
Entrevista:O Estado inteligente
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