Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 26, 2008

O GLOBO EDITORIAL, Estágio final

A campanha eleitoral no Rio tem permitido que todos compreendam o sentido real de designações como “estado paralelo” ou “zonas de exclusão”. Não se trata tão-somente de conceitos rebuscados, extraídos de textos de cientistas ou analistas políticos sobre desdobramentos da deterioração da segurança pública na região metropolitana carioca — e não só nela.

Não é de hoje a dramática e perigosa realidade da existência de feudos e capitanias em que o Estado não tem mais o monopólio da força, e, por isso mesmo, não consegue impor o cumprimento da lei e garantir o exercício de dispositivos inscritos na Constituição. O agravamento dessa situação, pela inépcia do poder público em fazer valer o estado de direito nessas áreas — outra mazela que não é apenas carioca —, foi retratado numa série de reportagens do GLOBO, há cerca de um ano, sobre como o regime ditatorial continuava — e continua — a vigorar para centenas de milhares de pessoas na região metropolitana. No posto de títere, em vez do militar de ocasião, o traficante e/ou miliciano local.

Com o agravante de que, no regime militar, havia leis e tribunais; leis draconianas, mas havia. Já na ditadura do bairro, da favela, a lei é feita e aplicada na hora, pelo títere local, e com as próprias mãos.
Os currais eleitorais controlados por milicianos e quadrilhas do tráfico surgem nesta campanha eleitoral em decorrência do longo processo de degradação na segurança pública e, por conseqüência, nos usos e costumes da vida política.
Um dos últimos estágios nessa metástase social que vivemos é quando a criminalidade, de colarinhos de todas as cores, começa a tomar de assalto as instituições, conquistando representatividade política pela força da coerção — de forma sutil, por mecanismos clientelistas, como os chamados centros sociais, ou pelo manejo das armas.
Os assentos na Câmara de Vereadores e na Assembléia Legislativa dos irmãos donos de milícia na Zona Oeste Jerominho (PMDB) e Natalino (DEM), no momento devidamente encarcerados, atestam o estágio avançado dessa degradação.
O caso da Rocinha, em que o traficante local registra em ata a decisão de destinar a um candidato a vereador os votos do seu curral eleitoral — curral estabelecido numa área dividida entre dois bairros onde há uma das mais altas rendas per capita do país, São Conrado e Gávea —, compõe, com Jerominho e Natalino, um cenário de terror.

Nele, o estado de direito democrático será solapado por dentro das próprias instituições — o mesmo projeto bolivariano em curso na Venezuela, na Bolívia e no Equador, e talvez, em breve, no Paraguai.
Usam-se, na operação de implosão da democracia, instrumentos da própria democracia. Os rebanhos de eleitores são manipulados para permitir a infiltração nas instituições de representação popular.
Por isso, bandeiras do MST — uma organização radical de esquerda já distante da questão da reforma agrária e mais abertamente voltada à tomada do poder — são desfraldadas na Rocinha. Os militantes enxergam na aliança com o tráfico e a criminalidade em geral um atalho para revogar a “ordem burguesa”. Se esse projeto viesse a ser executado, na verdade o que existiria no final seria um narcoestado. Estágio a que certamente não chegaremos. Porém, para esse perigo ser mais rapidamente afastado, o poder público, em todos os níveis, deve despertar de vez para os sérios riscos que a sociedade brasileira — não apenas a carioca e a fluminense — corre.

O governador Sérgio Cabral demonstra ter a necessária vontade política para esse combate, que passa pelo saneamento da polícia fluminense. A tarefa, contudo, por sua dimensão, requer um trabalho coordenado do Palácio Guanabara com municípios e Brasília. Daí a importância de a Polícia Federal de fato entrar na investigação e repressão dos currais eleitorais usados para que a criminalidade amplie sua presença na representatividade política municipal.
O drama que transcorre de forma translúcida na região metropolitana do Rio, e de maneira menos visível em outras, deve levar magistrados da Justiça eleitoral e dirigentes partidários à reflexão. Eles podem e devem servir de barreira a que laranjas de traficantes, milicianos ou de que ramo da criminalidade seja conquistem cargos eletivos, alguns deles blindados por imunidades.
Os currais eleitorais da criminalidade reforçam, ainda, a posição defendida pelo Tribunal Regional Eleitoral fluminense (TRE-RJ), favorável a uma avaliação rígida, como deve ser, da folha corrida dos candidatos.
Se valesse a interpretação pessoal do próprio ministro Ayres Britto, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Jerominho e Natalino, mesmo sem qualquer condenação final, não teriam sido candidatos. Mas Britto é minoritário no TSE.
O Congresso, por sua vez, precisa apressar a revisão da Lei das Inelegibilidades, para acabar de vez com o conflito de entendimentos entre tribunais regionais e o TSE. Impedir que pessoas condenadas em primeira instância por crimes graves ganhem passaporte para a política já será um grande avanço. Mas, antes que isso seja possível, os magistrados devem julgar atentos ao que acontece na Rocinha e em outras “zonas de exclusão”.
É impensável que, restaurada a democracia depois de mais de duas décadas de trevas políticas, ela venha a ser ameaçada por traficantes, milicianos e radicais de esquerda, devido à leniência de representantes do Judiciário, do Executivo e do Legislativo. Será um retumbante suicídio institucional.

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