Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, julho 31, 2008

Doha e as ilusões da geopolítica



ARTIGO - Rolf Kuntz
O Estado de S. Paulo
31/7/2008

Mais um capítulo do enorme livro das ironias da história foi concluído nesta semana em Genebra. Índia, China e Estados Unidos levaram ao fracasso mais uma tentativa de acordo na Rodada Doha de negociações comerciais. Ninguém sabe se é o colapso final ou se a negociação será retomada em dois ou três anos, ou num prazo mais longo. Há cinco anos, Índia e China foram convidadas para integrar o Grupo dos 20 (G-20), criado pelo Brasil para combater os subsídios à agricultura e o protecionismo do mundo rico. Deram peso ao G-20, isso não se pode negar. Anteontem, seus negociadores deram contribuição decisiva a mais um fiasco defendendo uma tese contrária aos interesses brasileiros.

Os dois países foram escolhidos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu primeiro mandato, como parceiros estratégicos do Brasil. A China foi reconhecida como economia de mercado. A Índia foi convidada para integrar um grupo conhecido pela sigla Ibas - Índia, Brasil e África do Sul.

Indianos e chineses nunca se deixaram arrastar por essa fantasia. Em setembro de 2006, um vice-ministro do Comércio da Índia, Jairam Ramesh, disse à repórter Patrícia Campos Mello, do Estado: “Não se enganem, Brasil e Índia são concorrentes.” A idéia dos dois países como aliados naturais “é um pouco ingênua”, explicou Ramesh. E completou: “Competimos em manufaturas, temos interesses contrários em agricultura e, em serviços, queremos uma abertura mais rápida do que os brasileiros.”

Publicada pouco antes da visita do primeiro-ministro indiano a Brasília, a entrevista causou agitação diplomática, mas não parece ter entrado na pauta de conversações.

O vice-ministro Jairam Ramesh apenas traduziu em palavras francas um fato conhecido de qualquer pessoa familiarizada com a Rodada Doha. Na conferência ministerial de Hong Kong, em 2005, a delegação indiana, chefiada pelo ministro do Comércio, Kamal Nath, havia defendido condições especiais de protecionismo agrícola para as economias em desenvolvimento - algo mais amplo que as salvaguardas tradicionais e as listas de produtos “sensíveis” propostas pelos negociadores europeus e americanos.

Parte da delegação brasileira, enviada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, aplaudiu a proposta e defendeu o uso daquelas barreiras para defender os agricultores familiares - uma enorme tolice diante do poder de competição da agricultura nacional e de seu interesse na abertura dos mercados. O pessoal do Itamaraty deve ter percebido a bobagem de seus colegas de governo, mas decidiu tratar com simpatia a pretensão dos indianos, partilhada pelos chineses, em nome da unidade estratégica das economias em desenvolvimento.

A atuação indiana e chinesa nessa reunião apenas confirmou os limites da cooperação entre os membros do G-20. Poderiam trabalhar juntos para defender a liberalização do mercado agrícola no mundo rico, mas nem todos estariam dispostos a enfrentar abertamente a competição internacional. Para alguns países, como Brasil, Argentina e Uruguai, a plena liberalização do mercado seria o melhor resultado. Mas era preciso, imaginavam os diplomatas, manter o G-20 e, além disso, compor interesses com outros grupos de países pobres e em desenvolvimento igualmente protecionistas em agricultura.

Qualquer observador menos distraído teria percebido, nessa altura, o fato indisfarçável: os interesses do Brasil, no comércio agrícola, não eram os mesmos de vários outros membros do G-20 e de outros conjuntos mais ou menos organizados para a Rodada Doha. Mas a diplomacia brasileira quase sempre se comportou como se tivesse de promover, com sua retórica e seu empenho, os interesses de grupos e não os do País.

Essa foi uma das marcas do governo Lula desde o início do primeiro mandato: definir o interesse nacional quase sempre como vinculado a interesses de parceiros do Mercosul, da América do Sul e até de um “Sul” imaginário, formado por uma fantasiosa confraria de países pobres e em desenvolvimento. Essa concepção nunca foi partilhada pelos parceiros “estratégicos”, a começar, naturalmente, pelos do Mercosul.

Na maratona de negociações de Genebra, encerrada na terça-feira, o chanceler Celso Amorim mostrou uma rara disposição de pôr em segundo plano, pelo menos por algum tempo, o interesse de qualquer confraria sulina. Fez um esforço inegável e quase teve sucesso. Com o fiasco da rodada, terá de pensar em novas prioridades. Seria bom se jogasse fora, ao mesmo tempo, as fantasias geopolíticas dos últimos anos.

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