A declaração do ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, ajudou a revelar bastidores e erros da posição brasileira nas negociações comerciais.
Ela mostra que o Itamaraty acha que tem o monopólio da definição dessa posição. A Camex, que antes era o órgão de formulação da política comercial do Brasil, deixou de ter esse papel. Os diplomatas não podem ser representantes de si mesmos. Eles têm que refletir o país.
Em outros pontos, as escolhas feitas pelo atual governo fazem com que o Itamaraty não reflita a média da opinião dos brasileiros.
Escolher alianças preferenciais por razões ideológicas com vizinhos sempre foi contra a posição do Brasil.
Defender o “direito” do desmatamento vai contra os interesses nacionais.
O ministro da Agricultura disse à repórter do “Estado de S.Paulo” Denise Chrispim Marin que o presidente Lula nunca perguntou o que ele achava de Doha. Aí é que está a coisa estranha: o principal tema desta rodada de negociação é a agricultura; o Brasil é um dos maiores e o mais promissor exportador de alimentos do mundo; por que, então, o ministro da Agricultura não é ouvido? Por que nem ele, nem o ministro Miguel Jorge estão na etapa decisiva da negociação? — Onde está a Camex? Como é que se forma a posição brasileira? Pelo que se vê na entrevista, os setores não são ouvidos e ministros de outras áreas não estão envolvidos na negociação.
Quero chamar a atenção para o fato de que o MST está lá, a Contag está lá, e o Ministério do Desenvolvimento Agrário também está lá. Há uma politização desse assunto — disse o embaixador Rubens Barbosa, que hoje está no Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp.
Um ponto de honra da agricultura brasileira é que não se aceite que China e Índia tenham direito ao mecanismo de salvaguardas especiais, criado inicialmente para os países muito pobres da África. Isso fecha os dois mercados mais promissores para nossos grãos e alimentos. Uruguai e Paraguai ficaram ferozmente contra, mas a posição brasileira ficou ambígua.
— Isso é inaceitável; me disseram no Ministério da Agricultura que o Itamaraty garantiu que não vai aceitar essa posição. Se aceitar, será um retrocesso — afirmou Pedro de Camargo Neto, empresário do setor rural.
A Fiesp sempre vai reagir à abertura industrial, mas sabe que ela virá. O que o embaixador Rubens Barbosa está dizendo é que, ao não ouvir todos os setores, o Itamaraty pode acabar cedendo na indústria sem ter vantagens na agricultura.
Mais relevante até que a posição contrária de cada setor é que o Itamaraty engessou o Brasil no G-20.
Joga tudo na união do grupo, mesmo que isso signifique adaptar os interesses do país. A idéia de somar forças na mesa de negociação é boa, mas, em alguns itens, os aliados óbvios do Brasil são países exportadores de commodities agrícolas, como Austrália, Canadá e até Estados Unidos. China e Índia têm um conflito insanável com o Brasil no comércio agrícola. Eles querem barrar o comércio, e nós queremos vender.
Não é só nas negociações comerciais que está havendo um divórcio entre o que interessa ao Brasil e o que o Itamaraty defende como ponto de honra. Nas negociações do clima, a posição diplomática envelheceu e pelo menos um estado amazônico já está revogando, na prática, a posição brasileira.
O Brasil em 1992 foi contra a inclusão da floresta em pé como parte do mecanismo de combate às emissões dos gases de efeito estufa. A idéia era que, se aceitasse isso, teria que aceitar metas para limitar as emissões brasileiras, que são majoritariamente de desmatamento. Essa posição já era discutível na época e envelheceu nos 16 anos seguintes. Com o avanço das negociações, foi criado o REDD (Reducing Emissions from Deforestation and Degradation), um mecanismo para incluir o desmatamento evitado no mercado de crédito de carbono, ou seja, pagamento em troca do ativo da preservação das florestas existentes.
Ao não aceitar isso, o Brasil está deixando sem valor qualquer esforço de evitar o desmatamento. O Estado do Amazonas, como expliquei aqui, está criando produtos concretos a partir do pagamento às comunidades que vivem dentro ou nas proximidades de unidades de conservação. Esse compromisso de não desmatar, envolvendo pessoas, governos, monitoramento auditado por certificadoras internacionais, está virando um produto que começa a ser negociado com empresas privadas. Mais do que os negócios que podem ser feitos em troca do não desmatamento, a proteção da floresta é hoje do mais legítimo interesse nacional.
Portanto, o contorcionismo diplomático que nos leva a defender o direito de desmatar é um absurdo esclerosado contrário aos interesses do Brasil. O Itamaraty precisa atualizar a posição brasileira.
As alianças preferenciais com países dessa suposta esquerda chavista também não têm relação com a opinião pública brasileira, que prefere ter boas relações com todos os seus muitos vizinhos.
Está na hora de o Itamaraty ouvir o Brasil nas negociações comerciais, nas relações com os vizinhos e nas negociações climáticas.
O país não quer alianças ideológicas, defesa dos interesses da China apenas para ter uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, nem o “direito” de desmatar. O Brasil prefere ter mercados para os produtos agrícolas em todos os países, sem exceção; ter boas relações com todos os vizinhos, sem preferências; defender a Amazônia em pé, de todas as formas possíveis.
Entrevista:O Estado inteligente
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