O Globo |
26/6/2008 |
"Na juventude eu sonhava com o dia em que o povo organizado tomaria o poder; agora, sonho com o dia em que o povo desorganizado chegará enfim ao poder." As palavras talvez não tenham sido exatamente essas, mas o sentido está aí. A boutade é de Ruth Cardoso, em conversa particular com uma amiga, também antropóloga. Debaixo da fina ironia, assoma uma crítica que ela, mais do que ninguém, estava qualificada para fazer. Ruth Cardoso esteve entre os primeiros a rastrear, há três décadas, a emergência de uma sociedade civil que se organizava fora do aparelho de Estado, dos partidos políticos e das associações corporativas. Ela acreditou na dinâmica criativa e nas potencialidades democráticas do chamado Terceiro Setor, a expressão criada para descrever as organizações não-governamentais (ONGs). A sua crítica não se dirigia a esse movimento, nas suas raízes, mas ao que ela parecia interpretar como uma degeneração de seu sentido original. Inventando um novo lugar para a figura da primeira-dama, Ruth Cardoso escapou a duas conhecidas armadilhas. Ela não invadiu a esfera decisória das autoridades eleitas nem se transfigurou em componente decorativo para ocasiões cerimoniais. Fiel a si mesma, mas atenta às circunstâncias, criou e animou a Comunidade Solidária, uma parceria entre o Estado e o Terceiro Setor. Nessa parceria, o poder público assumiu a gestão de iniciativas sociais financiadas com recursos privados. É o oposto do que se faz, como regra geral, em nome do Terceiro Setor. Na sua aplastante maioria, as ONGs são financiadas por recursos públicos para gerir, a partir de suas próprias concepções, iniciativas que deveriam permanecer sob controle direto do Estado. O nome que a Associação Brasileira de ONGs (Abong) dá para isso é democracia participativa. Mas não há aí nem democracia nem participação. O que existe é a captura fragmentária do Estado por organizações privadas, que parasitam a democracia e impõem uma agenda política particular ao conjunto da sociedade, esvaziando o sentido do voto e da representação. As ONGs fazem lucrativos negócios, não recolhem impostos e pagam regiamente a seus executivos, muitos dos quais circulam em redes nas quais se enlaçam a empresa privada e o Terceiro Setor. Não é preciso ser um entusiasta da Comunidade Solidária para reconhecer que o programa não tinha o defeito de funcionar como cobertura da ação partidária nem propiciava negócios a uma elite política. Ruth Cardoso nunca deixou sua posição de primeira-dama e sua função de coordenadora do programa servirem ao fim degradante do clientelismo. Mas aquilo foi a exceção. A regra, escancarada nessa "era Lula", é a valsa de compadrio entre governo e ONGs que não passam de tentáculos do partido governista. A receita é mais ou menos a seguinte: sob a etiqueta da "participação", o governo financia ONGs com plataformas setoriais, ligadas à saúde, ao meio ambiente, às comunicações, aos negros ou aos gays, fabricando "movimentos sociais". Essas ONGs geram supostas demandas sociais, alinhadas com interesses de grupos específicos, que são "atendidas" pelo governo. O circuito, bancado com dinheiro público, produz clientelas políticas e rendas para burocratas partidários. O último documento político significativo que Ruth Cardoso assinou foi a carta "Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais", entregue no fim de abril aos ministros do STF. Ela relutou em se juntar às vozes que alertam para os perigos da divisão da sociedade em raças oficiais, fazendo-o apenas quando certificou-se de que não se condenava o conceito de ações afirmativas, mas a sua manipulação com a finalidade de extinguir o princípio democrático da igualdade de direitos. Talvez tenha contribuído para a decisão sua repulsa ao jogo pelo qual uma miríade de ONGs, arrogando-se o papel de representantes de uma "etnia" ou "raça", capturam o Estado e o subordinam a seu programa privado. Afinal, Ruth Cardoso sempre acreditou que o Estado deve servir aos cidadãos - isto é, ao povo desorganizado. |
Entrevista:O Estado inteligente
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