A bolacha na telinha
e a nossa liberdade
"Por meio da censura prévia – de que foi obrigado a recuar – e da limitação à publicidade de vários produtos, pretende-se atingir o caixa das empresas de comunicação, que fazem do que faturam no mercado a fonte de sua independência editorial"
Dizem que sou arrogante, que nunca assumo um erro. A segunda parte, ao menos, é falsa. Errei na única vez em que apoiei, ainda que parcialmente, uma proposta do petismo. Fui enganado pelo ministro da Saúde, o peemedebista José Gomes Temporão. Como sabem, o governo limitou o horário da propaganda de cerveja na TV – Temporão invocava com a "Zeca-Feira". Segundo ele, a publicidade glamouriza o consumo do produto. No programa Roda Viva, eu lhe disse que era favorável à limitação de horário, mas contrário a que o governo se metesse no conteúdo publicitário. Seria censura. É claro que a limitação acarretaria uma diminuição de receita das emissoras de TV. "Fazer o quê?", pensei. "Aconteceu isso quando se proibiu a propaganda de cigarro; que procurem novos nichos, novos produtos, novas fontes." Eu, o liberal tolo diante de um governo petista. Como numa canção antiga, proclamo: "Errei, sim!". E digo por quê.
Nova pretensão anunciada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deixa evidente que a limitação da propaganda de cerveja tem mais a ver com a saúde do governo Lula do que com a saúde dos brasileiros. Percebi que ela era parte de uma estratégia para asfixiar as emissoras que dependem do mercado para viver – e não da bufunfa de estatais, do governo ou de seitas religiosas. Fui um idiota. Penitencio-me.
A Anvisa, órgão subordinado ao Ministério da Saúde, agora quer limitar ao período das 21 às 6 horas a propaganda de alimentos considerados pouco saudáveis, "com taxas elevadas de açúcar, gorduras trans e saturada e sódio", e de "bebidas com baixo teor nutricional" (refrigerantes, refrescos, chás). Mesmo no horário permitido, a propaganda não poderia conter personagens infantis nem desenhos. Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia), isso representaria um corte de 40% na publicidade do setor, estimada em 2 bilhões de reais em 2005. Dos 802 milhões de reais que deixariam de ser investidos, algo como 240 milhões seriam destinados à TV – e a maior parte disso, suponho, para a Rede Globo.
Virei caixa dos Marinho? Não! Virei guardião da minha liberdade. É evidente que se tenta usar a via da saúde para atingir o nirvana da doença totalitária. Querem criar dificuldades para as emissoras – e, a rigor, nos termos dados, para todas as empresas que vivem de anúncios – para vender facilidades. O ministro Temporão, que ainda não conseguiu fazer funcionar os hospitais (sei que a tarefa é difícil; daí que ele deva se ocupar do principal), candidata-se a ser o grande chefe da censura no Brasil. Na aparência, ele quer nos impor a ditadura da saúde; na essência, torna-se esbirro de um projeto para enfraquecer as empresas privadas de comunicação que se financiam no mercado – no caso, não o mercado do divino ou o mercado sem-mercado das estatais.
Imagine você, leitor, que aquele biscoito recheado – em São Paulo, a gente chama de "bolacha" –, que sempre nos leva a dúvidas existenciais profundas ("Como as duas de uma vez? Separo para comer primeiro o recheio? Como o recheio junto com um dos lados?"), seria elevado à categoria de um perigoso veneno para as nossas crianças. Temporão quer protegê-las desse perigoso elemento patogênico. Mesmo no horário permitido, a propaganda teria de ser uma coisa séria, de bom gosto. Sem apelo infantil. O Ministério da Saúde, quando faz propaganda de camisinha, sempre recorre a situações que simulam sexo irresponsável. Mas não quer saber de desenho animado em propaganda de guaraná. A criatividade dos publicitários, coitados, teria de se voltar para comida de cachorro. Imagine o seu filho, ensandecido, querendo comer a sua porção diária de Frolic, estimulado pela imaginação perversa de desalmados diretores de criação.
A proposta não resiste a trinta segundos de lógica. É evidente que biscoito não faz mal. Em quantidades moderadas, não havendo incompatibilidade do organismo com os ingredientes, faz bem. Se o moleque ou a menina comerem um pacote por dia, tenderão a engordar. Deve haver um limite saudável até para o consumo de chuchu. Carro também mata – acidentes de automóvel são uma das principais causas de morte no Brasil. A culpa, quase sempre, é da imprudência do motorista ou das péssimas condições das estradas. É preciso usar/consumir adequadamente a mercadoria.
Uma pergunta: água entra ou não na categoria das "bebidas com baixo teor nutricional"? O ridículo desse pessoal é tamanho a ponto de propor limites à propaganda de água? E de lingüiça, pode? A gordura animal em excesso também faz mal à saúde. Quem garante que o sujeito não vai consumir o produto todos os dias, até que as suas artérias se entupam? Não ande de moto. Há o risco de cair. Numa bicicleta, você pode ser atropelado. E desodorizador de ambiente do moleque que quer fazer "cocô na ca-sa do Pe-dri-nho"? Pode ou não? Não fere a camada de ozônio?
Observem: ainda que isso tudo fosse a sério, com o propósito de cuidar da saúde dos brasileiros, já seria um troço detestável. Sabiam que os nazistas foram os primeiros, como direi?, ecologistas do mundo? É verdade: não a ecologia como uma preocupação vaga com a natureza, mas como uma política pública mesmo. Hitler, que era vegetariano, gostava mais de paisagem do que de gente, o que fica claro na "arte" alemã do período, com suas evocações da Floresta Negra. Eles também tinham uma preocupação obsessiva com a saúde, com os corpos olímpicos. O tirano odiava que fumassem na sua presença, privilégio concedido a poucos. A exemplo do czar naturalista de Carlos Drummond de Andrade, Hitler caçava homens e achava uma barbaridade que se pudessem caçar borboletas e andorinhas.
A preocupação excessiva do governo nessa área, entendo, é também patológica, mas a patologia é outra. Por meio da censura prévia – de que foi obrigado a recuar – e da limitação à publicidade de vários produtos, pretende-se atingir o caixa das empresas de comunicação, que fazem do que faturam no mercado a fonte de sua independência editorial. Ora, é claro que, sem a publicidade da cerveja, dos alimentos e do que mais vier por aí, elas ficam, especialmente as TVs, mais dependentes da verba estatal e do governo. E, no caso, é mais prejudicado quem se financia mais no mercado.
A equação é simples: vocês acham que a porcentagem da grana de estatais no faturamento total é maior na Globo ou em qualquer uma das concorrentes? Numa Carta Capital ou numa VEJA? Os petistas não se conformam que o capitalismo possa financiar a liberdade e a independência editoriais. Querem tornar essas grandes empresas estado-dependentes. Quanto mais se reduz o mercado anunciante – diminuindo, pois, a diversidade de fontes de financiamento –, mais se estreita a liberdade.
Temporão, tenha sido ou não chamado à questão com esse propósito, tornou-se o braço operativo dessa pressão. Curioso esse ministro tão cheio de querer impor restrições do estado à vida e às opções das pessoas. É aquele mesmo que já deixou claro ser favorável à descriminação do aborto até a 14ª semana porque, parece, até esse limite o feto não sente dor, já que as terminações nervosas ainda nem começaram a se formar. É um ministro, digamos, laxista em matéria de vida humana, mas muito severo com biscoitos. O que faço? Recomendo a ele que tenha com as crianças que estão no ventre o mesmo cuidado que pretende ter com as que querem comer Doritos?
Eis aí o caminho do nosso bolivarianismo light. A terra está amassada pelo discurso hipócrita da saúde. Farei agora uma antítese um tanto dramática, cafona até, mas verdadeira: essa gente finge cuidar do nosso corpo porque quer a nossa alma.
Entrevista:O Estado inteligente
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