Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 27, 2008

FERREIRA GULLAR

Entre o fascínio e o ludíbrio

Oculto sob a máscara, o que se pretende não é assustar, mas fascinar vítimas e predadores


ROSTO e máscara são temas inesgotáveis. Fui mexer com eles e agora não consigo me livrar. Eis que, por acaso, deparo-me com um artigo de Roger Caillois, publicado numa velha "Nouvelle Revue Française" (outubro de 1957), intitulado "Le Masque".
Como eu, ele também havia sido arrastado a especular sobre o tema, só que com mais competência e originalidade: partiu da relação entre homens e insetos, alguns dos quais também "usam" máscara. Caillois se refere, precisamente, a um tipo de hemípteros chamados "fuegosos" (de fogo), que o dicionário descreve como "insetos luminosos de países quentes", ou vagalumes, como os chamamos no Brasil. O principal desses insetos -fulgosa lanternalia- emite uma luminosidade tão intensa que, segundo a lenda, daria para ler um jornal sob ela. Mas o que importa, para nós, neste caso, é que sua cabeça se alonga como uma protuberância que fulge igual a uma estranha lanterna. Os cientistas descobriram, porém, que a função daquela cabeça desproporcional -que lembra a de um minúsculo crocodilo- é assustar. Mas assustar a quem, se a cabeça, embora monstruosa, é tão pequenina? Caillois, levando em conta o fato de que as asas do inseto são coloridas e lindamente decoradas, conclui que ele, na verdade, se acredita um feiticeiro, oculto sob aquela máscara, e o que pretende não é assustar e, sim, fascinar tanto as suas vítimas como os seus predadores. Essa é uma tese interessante, quando mais não seja, porque nos situa na fronteira imprecisa que separa o medo e o fascínio.
Mas não é a regra. Segundo ele, nas sociedades primitivas, o que importa é estar mascarado -e fazer medo; ou não estar- e ter medo, muito embora haja comunidades em que alguns têm medo de uns e fazem medo a outros. Nestes casos, já se aprendeu que a aparição assustadora do mascarado não é mais que um truque de alguém que se disfarça para assustar os profanos. Mas é inevitável que, aos poucos, as máscaras e os outros elementos utilizados para assustar se tornem com o tempo instrumentos litúrgicos, acessórios de cerimônia, de dança ou de teatro.
Ele afirma que talvez a última tentativa de dominação política pelo uso da máscara tenha sido a de Hakim al-Moquaunâ, o Profeta Velado (ou mascarado) do Khorassan que, no século 8, derrotou os exércitos do Califa. Hakim ocultava o rosto sob um véu de cor verde ou, segundo outros, sob uma máscara de ouro, que jamais tirava. Ele se dizia Deus e garantia que nenhum mortal poderia ver-lhe o rosto sem ficar instantaneamente cego. Mas alguns de seus seguidores quiseram provas disso e exigiram que lhes mostrasse a face oculta. Um antigo texto conta que 50 mil soldados de Moquaunâ se juntaram à porta do castelo, ajoelharam-se e pediram para ver-lhe o rosto, mas não receberam resposta. Como insistissem e implorassem, Hakim mandou um servo dizer-lhes que os atenderia em breve.
Ordenou, então, que cada uma das cem mulheres que o serviam segurasse um espelho e se postasse em determinada posição no alto do castelo, de modo que um espelho ficasse refletindo outro, no momento em que o sol brilhasse intensamente. Quando os soldados chegaram, aquele jogo de espelhos, dada a luminosidade que provocava, deixou-os cegos por um momento. Hakim então mandou que lhes dissessem: "Vosso Deus está presente. Contemplai-o". Os homens, aturdidos, ajoelharam-se.
Mas um dia a farsa se desfez. Hakim, para não se deixar desmascarar, envenenou suas cem servas, decapitou o seu servo particular, tirou as roupas e se jogou dentro de uma fornalha acesa.
Essa é a versão de Caillois, mas a de Jorge Luis Borges é outra. Conta ele que Hakim parecia buscar a morte a cada momento, seja nas batalhas quando as flechas silvavam em torno de seu corpo, seja abraçando e beijando leprosos que chamava para dentro do castelo. Mandara cegar as 104 mulheres de seu harém para que pudessem deitar-se com ele sem lhe ver o rosto proibido. Ainda na versão de Borges, no ano de 163 da Héjira, Hakim estava cercado por seus inimigos quando uma mulher do harém começou a gritar que a mão direita do profeta não tinha o dedo anelar e que os demais dedos não tinham unha. Dois capitães lhe arrancaram a máscara de ouro, pondo à mostra um rosto branco como se manchado de lepra e tão deformado que parecia uma careta: uma úlcera comia-lhe os lábios. Hakim ainda tentou um engano final: "Vosso pecado abominável vos impede de perceber meu esplendor...", começou a dizer. Não o escutaram e o trespassaram com lanças.

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