Dercy Gonçalves, a trágica
"Ela era infantilizada e infantilizadora. O palavrão
era sua arma. Que graça há num palavrão? A mesma
de um tombo do palhaço – em princípio, nenhuma.
Mas as crianças acham engraçado."
Com a morte de Dercy Gonçalves, aos 101 anos (ou 103, segundo certas versões), é mais um elo com a era Vargas que se rompe. Não é o último. Permanecem, para o bem ou para o mal, a Petrobras, a CLT e a vedete Virgínia Lane, esquecida, aos 88 anos, mas viva e presente ao enterro da amiga Dercy. Dercy Gonçalves fez-se no teatro de revista e na chanchada, dois produtos típicos do período. Ela vinha de um Brasil em preto-e-branco, de terno de tropical inglês, cassinos, rainha do rádio, lista das dez mais elegantes, bondes, manifestos de militares, óleo de fígado de bacalhau, Domingos da Guia, "o Divino", e Leônidas, "o Diamante Negro". Era um Brasil rural, muito mais pobre, e infantil.
Infantil seria a palavra? "Ingênuo" provocaria menos contestação. Acreditava-se na solidez das famílias, obedecia-se aos preceitos da Igreja Católica e imaginava-se que o Brasil era o país do futuro. Não se percebiam, ou se percebiam menos, as injustiças, e a pobreza conhecia o seu lugar, no campo, invisível para os habitantes das cidades, que por isso mesmo se apresentavam arrumadinhas, sem as periferias desarticuladoras nem a violência. Nesse ambiente, Dercy Gonçalves foi escalada para fazer o papel do contra, mas era apenas um papel, e pouco convincente. Era o escape permitido. Como ao palhaço no circo, a ela se deixava que não cumprisse as regras para que os outros pudessem rir.
Não era só o Brasil, o mundo era ingênuo. Os Estados Unidos tinham um presidente, Franklin Roosevelt, condenado à cadeira de rodas por causa da paralisia infantil, mas o público ficou muito tempo sem saber disso; o Roosevelt oficial escondia as pernas. Em Hollywood os beijos eram de boca fechada. Mas ingênuo talvez também não seja a palavra. Os horrores da II Guerra Mundial comiam soltos. No que aquele mundo era bom era em esconder seus podres. A corrupção não deixava de ocorrer no Brasil, mas, como as pernas de Roosevelt, não chegava aos jornais. Em numerosos casos, praticava-se a corrupção sem saber. Aceitava-se (que mal pode haver nisso?) o presente do empresário bonzinho.
Ao Brasil a palavra "infantil" talvez não caiba, mas a Dercy Gonçalves cabe. Ela era infantilizada e infantilizadora. O palavrão era a sua arma. Que graça pode haver num palavrão? A mesma de um tombo do palhaço: em princípio, exceto em ocasiões muito inesperadas, nenhuma. Mas as crianças acham engraçado. Igualmente, o palavrão, exceto em ocasiões precisas, não tem graça. Não tem graça em briga de trânsito nem na voz dos técnicos de futebol, filtrada pelos microfones mantidos dentro do campo. Entre Dercy e sua platéia, no entanto, o grande intermediário, a solda, o agente infalível do riso, era o palavrão. "O palavrão… quando virá o palavrão?", perguntava-se a platéia, ansiosa, quando ele tardava. Dercy Gonçalves sem falar p.q.p. ou f. da p. seria o mesmo que Carmen Miranda sem o turbante e os balangandãs. Dercy não fraudava a expectativa. Se o palhaço não pode deixar de tropeçar, ela não podia deixar de soltar o palavrão. A platéia, tão infantilizada quanto a artista, esbaldava-se.
Será que Dercy gostava, lá no fundo, de falar palavrões? Suspeita-se que ela era um pouco vítima do tipo que lhe coube encarnar. É um caso parecido com o de Grande Otelo, outro personagem da era Vargas. Os vários papéis que Grande Otelo representou podem ser resumidos a um: o do negro da caricatura. Uma de suas especialidades era revirar os lábios, nesse caso chamados de "beiços". Consta que era um ator de recursos, mas, assim como, depois dele, Chocolate e o Mussum dos Trapalhões, ficou prisioneiro da caricatura do negro tosco. Dercy Gonçalves ficou prisioneira da mulher, depois da velha, desbocada. Era seu ganha-pão.
No Carnaval de 1991, Dercy, aos 83 anos, desfilou pela escola de samba Viradouro com os seios de fora. Faziam-lhe uma homenagem, mas não bastava sua presença. Era preciso fazer o tipo. Como não lhe deram um microfone para dizer palavrões, ofereceu o corpo. Na opinião predominante, foi um gesto bonito e libertário, mas também era possível enxergar ali um momento semelhante ao encenado por Garrincha na mesma avenida, anos antes – um Garrincha inchado e zumbi, exibido como bicho de circo. Identificada à comédia, Dercy também podia ser entendida como personagem de tragédia.
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2008
(5781)
-
▼
julho
(457)
- Clipping do dia 31/07/2008
- O Brasil pós-Doha editorial O Estado de S. Paulo
- Doha e as ilusões da geopolítica
- DOHA As razões do fracasso Luiz Felipe Lampreia
- Arrecadação esconde a realidade
- Algo saiu muito errado Carlos Alberto Sardenberg
- Dora Kramer - Os "coronéis" à beira-mar
- Celso Ming - Diplomacia de resultados
- Míriam Leitão - O Plano B
- Merval Pereira - Levamos uma "trucada"
- NOBLAT:Nada mais justo do que Celso Amorim sair de...
- Miriam Leitão Mais uma declaração desastrada de Ce...
- AGORA CELSO AMORIM PARTIU PARA A DELINQÜÊNCIA INTE...
- Níveis de complementaridade-Demostenes Torres blog...
- Clipping do dia 30/07/2008
- Augusto Nunes - Coisas da Política
- Merval Pereira - Dificuldades e facilidades
- Míriam Leitão - Rodou a rodada
- Fracasso de Doha mostra novo equilíbrio de poder, ...
- Clóvis Rossi - Todos perdem com fracasso de Doha; ...
- Celso Ming - Também não foi desta vez
- AMORIM CONCLUI O PRIMEIRO CAPÍTULO SOBRE A VERDADE...
- ''A estratégia comercial brasileira fracassou junt...
- Empresa nova já nasce velha-blog de Lucia Hipolito...
- Deterioração das contas externas O Estado de S. Pa...
- A raposa e o galinheiro - Sandra Cavalcanti
- A cartada do Brasil EDITORIAL Folha de S. Paulo
- A Universidade do MST
- Merval Pereira - Novos ventos
- Míriam Leitão - Déficit diferente
- Clipping do dia 29/07/2008
- Clipping do dia 28/07/2008
- Clipping do dia 27/07/2008
- Clipping do dia 26/07/2008
- Democracia grampeada-Ruy Fabiano
- PERTO DO CRISTO, LONGE DE DEUS 1 - UMA TRAGÉDIA CA...
- Miriam Leitão Novo mundo
- O GLOBO EDITORIAL, Raiz na pobreza
- l Merval PereiraO mundo real
- Mariano Grondona Sobre el empecinamiento y su sup...
- Joaquín Morales Solá | Un gobierno bajo el mando d...
- Joaquín Morales Solá |
- João Ubaldo Ribeiro Anotações políticas
- Daniel Piza
- Alberto Tamer
- Mailson da Nóbrega Mais uma do presidente do Ipea
- Celso Ming - A classe média muda o jogo (2)
- 18 anos de rombo fiscal Suely Caldas*
- EUA começam a rever estratégia de isolamento
- OPERAÇÃO SATIAGRAHA
- FERREIRA GULLAR
- DANUZA LEÃO
- Augusto Nunes-SETE DIAS
- Augusto Nunes-SETE DIAS
- VINICIUS MOTA Obama em Berlim
- MELCHIADES FILHO Piá curitibano
- RUY CASTRO Cura-se qualquer doença
- Miriam Leitão Visão estrangeira
- O GLOBO EDITORIAL, Estágio final
- Merval Pereira - Vendendo utopias
- Os enclaves econômicos Paulo R. Haddad*
- Celso Ming - A classe média muda o jogo (1)
- OPERAÇÃO SATIAGRAHA
- Os sem-terra em Genebra
- Grandes e pequenos partidos Marco Aurélio Nogueira
- O povo desorganizado Demétrio Magnoli
- Ilha de Cuba, para onde vai? Sergio Fausto
- veja Carta ao leitor
- VEJA Entrevista: Cory Booker
- Claudio de Moura Castro
- millÔR
- André Petry
- Reinaldo Azevedo
- Diogo Mainardi
- Roberto Pompeu de Toledo
- raDAR
- Especial As conseqüências da queda da fertilidad...
- Demografia: Previdência
- Especial: Demografia
- Demografia: Ambiente
- Demografia: Negócios
- Demografia: Saúde
- A prisão do Carniceiro da Bósnia
- Estados Unidos Campanha presidencial passa pela ...
- Sistema S Governo e empresários fecham acordo
- Inflação Os juros sobem: cadê o corte de gastos?
- Preso deputado chefe de milícia
- A polêmica lista dos políticos com ficha suja
- Geraldo Alckmin, o único candidato anti-Lula
- Como os subsídios dos ricos nos afetam
- Novo relatório da Satiagraha
- Yeda Crusius: mansão comprada após a eleição
- A parceria da Embraer com a JetBlue
- Os estragos provocados pela TPM
- Realeza A plebéia que pode vir a ser rainha da ...
- Os oceanos ameaçados pelo lixo
- Café de barista em casa
- Os melhores grãos do mundo
- Livros RETRATO DE UM EDITOR
- O DEUS TÍMIDO DO ROCK
-
▼
julho
(457)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA