É possível extrair prestígio do macabro e ficar muito bem na fotografia da atrocidade? Perfeitamente, basta converter a tragédia em ato promocional. Foi o que aconteceu na semana passada com o caso da criança mantida em cárcere privado sob ignominiosas torturas. A desgraça da menina tanto estarreceu a opinião pública quanto revigorou o instinto da autoridade brasileira para o vedetismo.
Durante quatro dias ela foi submetida a extenuantes sessões de “entrevistas exclusivas” para praticamente todos os veículos de comunicação. A criança foi entregue às mãos de aproveitadores e virou objeto do sensacionalismo. Depois foi levada ao exaurimento da sua intimidade em uma entrevista coletiva por meio de videoconferência na qual se confessou indisposta a repetir a mesma história. Isto às vésperas da sexta-feira da paixão.
E vejam que diligência formidável: juiz de Direito fez papel de mediador da traquitana em ação, enquanto a criança, já no pleno exercício das garantias constitucionais, era pajeada por uma psicóloga e uma assistente social. Foi espécie de operação rescaldo. A mesma videoconferência que não é apropriada ao réu preso – por ser “mecânica e insensível”, como julgou ministro do STF – serviu para expor a menina.
A autoridade deve estar preparada para a administração de crises geradas por crimes de grande repercussão. Ao representante do Estado é vedada a histeria de ofício e a manifestação do lado emocional peculiar ao motorista de taxi. A situação é mais grave quando envolve vítima de 12 anos. Os mesmos altruístas que reivindicam a proteção integral dos bandidos menores de 18 anos se esqueceram que à menina, apesar de tudo que passou, ainda assistia o direito fundamental ao respeito, princípio escriturado no Estatuto da Criança e do Adolescente. Tecnicamente, ela foi de novo humilhada.
A condição ultrajante da criança deu oportunidade a verdadeira corrida ao ouro midiático. Houve análise psicanalítica telegráfica. Apelou-se à sociologia das causas sociais da violência. ONGs cidadãs se mobilizaram com propostas afirmativas. Integrante do Ministério Público correu para identificar trabalho escravo e já mensurou indenização. Magistrado, alheio ao caso concreto, despachou condenação antecipada.
No calor do acontecimento, o defensor da acusada manifestou bom-mocismo advocatício e prometeu abandonar a cliente se se confirmassem as atrocidades. Médico-legista, que não tem que comentar publicamente a perícia, teve seu quarto de página no jornal. E até se formou delegação parlamentar tutora dos direitos humanos e das minorias para acompanhar as investigações. Um espetáculo!
Não estou aqui a defender que o crime seja escamoteado. Agora, muita gente fez do infortúnio da menina pretexto à aquisição de notoriedade. Se é real que a tortura vai deixar traços indeléveis na personalidade da menina, a exposição exagerada do drama equivale à sua segunda morte e só beneficia a a autoria do delito. Ela sofreu o abandono material e intelectual, foi afogada, ingeriu excremento e teve a língua macerada por alicate.
Ganhou bicicleta, comeu macarrão e recebeu promessa de ter os estudos custeados até a faculdade. Manifestou se sentir segura com tanta atenção. Não sabe que será esquecida imediatamente. Vai descobrir também que a solicitude de alguns patronos da cidadania deve caducar antes que seus dedos sejam cicatrizados. Certamente irá se decepcionar com as autoridades quando receber tratamento de fato velho. Daí vai perceber que aquela solidariedade toda não era gratuita e foi lastimavelmente remunerada com o seu próprio sofrimento. Tiraram casquinhas na dor da menina.
Demóstenes Torres é procurador de Justiça e senador (DEM-GO).