Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 01, 2008

A Guerra Particular de Lenin, de Lesley Chamberlain

Ensaio para a barbárie

A história pouco conhecida dos intelectuais expulsos 
por Lenin em 1922 antecipa o pesadelo comunista


Moacyr Scliar 

Fotos Hulton Archive/Getty Images, divulgação
Lenin (à esq.) e as fotos – tiradas pela polícia política – de intelectuais que ele mandou para o exílio: na luta para subjugar a velha Rússia e instaurar o comunismo, nenhuma voz dissonante era tolerada

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• Trecho do livro

As estimativas variam de historiador para historiador, mas calcula-se que o regime de Josef Stalin tenha matado cerca de 20 milhões de pessoas. Diante dessas barbaridades, a expulsão de algumas dezenas de intelectuais da União Soviética, ocorrida em 1922 – sete anos antes de Stalin subir ao poder e cinco depois da Revolução Russa –, parece um episódio menor. A integridade física dos exilados, ainda que não pudessem levar muito mais do que a roupa do corpo, não foi ameaçada. A jornalista e escritora inglesa Lesley Chamberlain, no entanto, teve boas razões para pesquisar exaustivamente a história desse expurgo – e para relatá-lo em detalhes em A Guerra Particular de Lenin (tradução de Alexandre Martins; Record; 420 páginas; 60 reais). Trata-se de registrar o momento em que a serpente põe o seu ovo, de analisar a violência totalitária ainda em embrião. A idéia de que Stalin representou um "desvio" em relação aos princípios revolucionários de Vladimir Lenin é exemplarmente derrubada nesse livro.

Autora de um livro biográfico sobre o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, Nietzsche em Turim, de várias obras sobre a antiga União Soviética e até de livros sobre a culinária da Europa Oriental, Lesley dá importância um tanto exagerada ao "navio da filosofia", como ficou conhecido o vapor que conduziu os intelectuais indesejáveis ao exílio. O tal barco deveria "tornar-se um mito", diz ela. Talvez não seja para tanto. Os ocupantes do barco hoje são pouco conhecidos. Os nomes de maior relevo são o do filósofo Nikolai Berdiaev, cuja obra misturava política com messianismo místico, e o do sociólogo Pitirim Sorokin, que paradoxalmente tinha sido preso pelo governo czarista por suas idéias contestadoras. Para Sorokin, aliás, a deportação foi uma sorte grande: emigrado para os Estados Unidos, fundou o Departamento de Sociologia em Harvard e escreveu várias obras sobre o comportamento altruísta e a tipologia da cultura, entre outros temas. As razões para o degredo desses personagens nem sempre são claras. Pergunta a autora: "Que mal os matemáticos Polner e Selivanov tinham feito à causa bolchevique além de ensinar as pessoas a contar?".

Ao falar sobre a diáspora russa, na segunda e na terceira parte do livro, Lesley não resiste à tentação de mencionar figuras conhecidas e charmosas, como o romancista Vladimir Nabokov e o lingüista Roman Jakobson, nenhum deles ligado ao "navio da filosofia". O livro perde força nesses trechos. A primeira parte da obra, que discute a expulsão e as razões de Lenin, é a mais interessante. Lenin sabia que os bolcheviques teriam de superar a tradicional cultura russa, da qual a religião, a monarquia, a estrutura feudal eram os esteios principais. O líder comunista desejava que sua ideologia fosse o antídoto para a tradição. O pensamento único e o coletivismo ideológico funcionariam como fator unificador, disciplinador das massas, substituindo, com o mesmo poder, a religião. Nesse contexto, não havia lugar para místicos como Berdiaev ou pensadores independentes como Sorokin. Razões mais circunstanciais também influíram na expulsão. Como a economia planificada redundou em fracassos, com diminuição da oferta de alimento, Lenin se viu forçado a adotar as medidas liberalizantes da NEP, a nova política econômica. Nessa abertura, ainda que modesta, havia o risco da "importação" de idéias "burguesas". Silenciar possíveis contestadores era uma forma de evitá-lo.

O papel de Stalin na expulsão de intelectuais foi até certo ponto surpreendente. Naquele período ele havia se tornado secretário-geral do Partido Comunista – "um funcionário de quem Lenin podia cobrar ações para implementar seu plano", de acordo com Lesley. Mas recebeu uma reprimenda do chefe por sua displicência em tocar o processo. Outro destacado bolchevique, Leon Trotsky, mostrou-se mais zeloso – até escreveu um artigo com o título expressivo de "Ditadura do proletariado, onde está teu açoite?". Numa entrevista ao Pravda,jornal oficial do regime, disse: "Os elementos que estamos enviando para o exterior não têm valor político em si. Mas eles são armas potenciais nas mãos de nossos possíveis inimigos. No caso de novos problemas, todos esses elementos discordantes e incorrigíveis se tornarão agentes político-militares do inimigo. Seremos forçados a fuzilá-los de acordo com os regulamentos de guerra". Ou seja: a deportação era, para as vítimas, o mal menor. Derrotado por Stalin na briga pela sucessão de Lenin, o próprio Trotsky seria morto, em seu exílio no México, por um agente stalinista, em 1940. Eis a lição de história de Lesley Chamberlain: o assassinato de Trotsky – e de outros milhões – já estava anunciado na triste viagem do navio da filosofia.

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