Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 17, 2008

DANUZA LEÃO


Tentando ser feliz


Basta que a filha da faxineira esteja com problemas -o marido a deixou com os três filhos, que a felicidade acaba

DIZEM QUE a felicidade se baseia num tripé: amor, saúde, dinheiro -não necessariamente pela ordem. Mas as coisas não são assim tão simples. Nada é simples.
Digamos que na sua vida pessoal tudo esteja correndo às mil maravilhas. Mas basta que a filha da sua faxineira esteja com problemas -o marido sumiu e a deixou com três filhos, sem dinheiro, ela não pode nem arranjar um emprego porque não tem com quem deixar as crianças-, que sua felicidade acaba. Se não acaba, fica, pelo menos, bem abalada.
A cada vez que ela te atormenta com o aspirador você vê, no seu rosto, os sinais da preocupação. Sabe a razão pela qual ela deixou de sorrir, o olhar ficou triste. E não dá para ficar indiferente a uma pessoa que você vê todos os dias, nem para pedir para ela passar o vestido com que você vai sair à noite, sobretudo não dá para reclamar se a carne estiver muito salgada. O que é uma carne salgada, diante de tantos problemas? E na sexta-feira, na hora de pagar pela semana de trabalho, quando você pensa em quanto gastou no cabeleireiro ou numa sandália de que nem precisava, dá para ser feliz?
Não, não dá.
E tem seu amigo que está mal de grana, sua tia que está velhinha e de quem você gosta tanto, mas que vê pouco porque o tempo é curto para ler os jornais, fazer Pilates, ir ao cinema, saber dos cartões corporativos do governo, se vai ganhar Hillary ou Obama. E o remorso? Dá para ser feliz sentindo não só um, mas vários remorsos? Não conheço ninguém que cumpra com todas as coisas que deveria, seja por fraqueza, preguiça, egoísmo, ou apenas porque prefira não pensar. Não pensar nas tragédias alheias para se proteger e assim poder ser feliz não deixa de ser uma teoria. Mas a vida dos outros -e sobretudo a dos mais próximos- sempre nos diz respeito, e para sermos totalmente felizes seria preciso que todos que nos rodeiam também o fossem. E se isso acontecesse, não se poderia nunca mais ler os jornais nem ligar a TV nos noticiários.
O pior mesmo é quando alguém de quem você gosta muito suspeita estar doente.
Se a intimidade for grande, você vai acompanhar todas as etapas, desde o primeiro médico, que pede vários exames, ao preço de cada um deles -que vão ser pagos com dificuldade e que demoram a ficar prontos. Depois dos resultados, é preciso ir a pelo menos mais dois outros médicos, para ouvir o diagnóstico: vai ser mesmo preciso operar.
São muitos os sentimentos pelos quais passa quem participa do problema; da preocupação à pena, da solidariedade à raiva. Até raiva, raiva de quem está os fazendo sofrer.
E nos dias que antecedem a cirurgia você não sabe se fala só disso -pois naturalmente é só no que o outro está pensando-, ou se fala bobagens, para distrair. E evita, de todas as maneiras, dizer "é preciso ter fé", pois seria admitir que a coisa pode ser feia, o que o outro não pode saber que você acha, e nisso não quer pensar.
Chega o dia da cirurgia, e acorda atrapalhada; não consegue fazer nada direito, esperando por um telefonema, por vários telefonemas, para saber como as coisas se passaram. E quando ouve que foi tudo bem e pensa que já passou, vê que a agonia ainda não acabou: falta o resultado dos exames pós-cirurgia, que só ficarão prontos em sete dias.
Aí você descobre que não está sofrendo só por ela, mas por você mesma e por sua própria vulnerabilidade, coisa na qual nunca havia pensado.
E ainda há quem pretenda ser feliz.

danuza.leao@uol.com.br

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