Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Com Império Serrano na avenida

Sob a chuva durante a madrugada, escola homenageou Carmen Miranda

RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

A última vez que eu me vira na pista de um desfile das escolas de samba fora na avenida Presidente Vargas, em 1968, e, mesmo assim, a trabalho, como repórter da revista "Manchete". Grande noite, que começou cedo, na antiga praça 11, e, umas mil mulatas depois, foi até às 10h ou 11h da manhã seguinte, na Candelária, sob um sol de derreter a própria.
Todas as escolas saíam no mesmo dia e grande parte das atividades se dava no chão, com os pés descalços ou de sapato de fivela mandando ver no asfalto, ao nível do mar. Não havia limite de tempo, e um passista podia se exibir durante dez minutos diante do relógio da Central. Era extenuante, inclusive para a imprensa -mas, quando se tem 20 anos, como eu na época, quem fica cansado?
Bem, 40 anos depois, em 2008, cá estou eu de novo na avenida, só que agora no sambódromo e no desfile da divisão de acesso, na noite de sábado. E não mais como repórter, mas como convidado do Império Serrano, que tentará voltar ao lugar que lhe cabe no grupo principal das escolas de samba.
Detentor de nove títulos e berço de grandes nomes do samba, como Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e dona Ivone Lara, o Império fora rebaixado em 2007 depois de um atribulado desfile em que tudo dera errado. Para 2008, a escola recuperara um tema antigo, campeão de 1972, sobre Carmen Miranda, produzira um samba novo (e melhor) e refizera o enredo, valendo-se de dados que a historiadora Rachel Valença recolhera em meu livro -"Carmen - Uma Biografia"- daí a razão do convite.
O tênis, eu já tinha. A calça branca, comprei uma de enfermeiro naquelas lojas onde se vendem uniformes. E a escola me presenteou com uma linda camiseta de listras verde-amarelas, com a estampa de Carmen no peito e, nas costas, a identificação de "Apoio".
Significaria que, durante o desfile, eu teria passe livre para ir aonde quisesse, desde que me limitasse às laterais das alas e tentasse não dar um calço num tocador de chocalho ou não ser atropelado por um carro alegórico. E eu próprio já decidira ficar longe da rainha da bateria, minha leitora Quitéria Chagas, cuja visão é mesmo perturbadora. Mas não estava proibido de jogar beijos para as "arquibas" ou para os camarotes.
O Império seria a última das escolas a desfilar -na melhor das hipóteses, adentraria a Marquês de Sapucaí às cinco da matina. E a chuva já caía firme por volta de três da manhã quando cheguei à concentração nas proximidades do Piranhão, que é como chamamos o prédio da prefeitura. Ali já estavam Rachel, o cantor Jorginho do Império, os carnavalescos Renato Lage e Márcia Lávia, e a maioria dos 2.700 componentes, sob a chuva que começara horas antes, e olhe que eles tinham chegado muito cedo.
É verdade que chovia para todas as escolas, mas há um consenso de que, pior do que chover durante o desfile, é chover antes -ensopa as fantasias, interfere nas alegorias, desafina os instrumentos e, pior, abate o moral. E o que choveu pelas horas seguintes foi como se São Pedro tivesse uma marcação especial contra o Império.
Eu próprio, com as meias encharcadas, água até dentro dos bolsos e uma espessa cachoeira nos óculos, já começava a me perguntar o que estava fazendo ali, às vésperas dos 60 anos, de pé havia horas, as pernas já duras e sem o dinamismo de outrora, e ameaçando uma tosse de cachorro. O sensato era alegar um motivo de força maior, dizer boa sorte e tchau, e ir assistir ao desfile em casa, com uma manta quadriculada sobre os joelhos e uma bolsa de água quente nos pés.
Foi então que olhei em torno e vi Carlos, Renata, João Paulo, Luiza, Pim, Manza, Marcão, Lúli e os outros jovens com quem tinha ido no ônibus para o Sambódromo -uma plêiade de rapazes e moças da zona sul, entre 20 e 27 anos, todos inteligentes e bonitos, com suas fantasias de dados e naipes de baralho evocando a glória de Carmen Miranda nos cassinos.
Mais à frente, estava a ala dos Zé Cariocas; perto dali, a que representava Carmen no rádio e nos discos; na outra esquina, a ala de Hollywood e, equilibrando-se no carro da Broadway, os meninos do elenco do musical "Saçaricando". Todos subitamente tão imperianos quanto o pessoal da Serrinha e de Madureira, que compõe o grosso da escola e sofre e luta por ela o ano inteiro.
Todos ignorando a chuva e cantando o samba, antes mesmo que a bateria entrasse em cena -na certeza de que a única maneira de fazer o Império subir era "dizendo" no gogó e no pé, com um entusiasmo que não podia dar confiança à chuva, ao vento ou ao cansaço.
O alto-falante anunciou a entrada do Império Serrano na Marquês de Sapucaí. Eram cinco e meia da manhã. Os garotos saíram cantando o samba como se estivessem indo para uma batalha em que o único resultado possível era vencer ou vencer. Ao observá-los, eu não sabia se o que escorria de seus olhos eram lágrimas ou a chuva. Empolgado, fui atrás.

Arquivo do blog