Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 15, 2007

União Européia, 50 anos


Celso Lafer

Em março de 1957 foi assinado o Tratado de Roma, que instituiu a Comunidade Econômica Européia. Os seis países fundadores - Bélgica, França, Alemanha, Itália, Luxemburgo e Países Baixos - deram início, naquele momento, ao processo da integração européia.

A integração européia representa o inédito na vida internacional. É uma resposta historicamente distinta de qualquer outra no trato dos três conhecidos problemas inerentes à dinâmica do funcionamento do sistema internacional, no qual paz e guerra se alternam. Com efeito, a Europa que se constituiu a partir do Tratado de Roma logrou: 1) captar e levar adiante o interesse comum; 2) administrar as desigualdades do poder; e 3) mediar e dirimir pacificamente controvérsias e conflitos de valores.

O encaminhamento destes problemas se deu por processos voluntários entre países vizinhos e soberanos que tinham um passado de tensões e guerras. Não foi, assim, uma integração por imposição hegemônica como a seu tempo na Europa cogitaram Carlos Magno, Felipe II, Napoleão e Hitler. Correspondeu ao conjunto de aspirações do europeísmo voltado para promover uma Europa unida, respeitadora de todos os seus Estados, povos e indivíduos.

Foi neste contexto que Mário Soares, ao refletir sobre o cinqüentenário do Tratado de Roma, com a autoridade de quem conduziu a adesão de Portugal à Europa comunitária e é um respeitado líder socialista, observou que a utopia mais concretizada na segunda metade do século 20 não foi o socialismo. É a do ideal de uma Europa em paz e prosperidade.

Os “pais fundadores” do processo europeu - personalidades do calibre de Adenauer, da Alemanha, Schuman e Monnet, da França, De Gaspari, da Itália, Spaak, da Bélgica - souberam dosar idealismo e realismo e construíram a noção de “interesse europeu” articulada ao “interesse nacional”. Por terem vivido os dramas da Europa da primeira metade do século 20, sublinharam o papel do estado de direito e dos direitos humanos na construção européia e, como humanistas de linhagem cristã ou socialista, inspiraram os partidos democrata-cristãos e socialistas da Europa Ocidental que levaram adiante o processo.

Conceberam uma inovação revolucionária que operou numa moldura propícia a incessantes pequenas rupturas. Estas são o fruto de mecanismos de permanentes negociações intergovernamentais instigadoras do abandono de um destino nacional solitário em prol de um destino compartilhado. O que é atualmente a União Européia resulta de dois processos destas incessantes rupturas - o alargamento e o aprofundamento - no âmbito dos quais a associação de múltiplos interesses econômicos e políticos vem edificando um destino comum.

Este destino comum se expressa, como diz Felix Peña, por meio de normas, de redes e de símbolos. Por isso vai além da fusão dos mercados nacionais num mercado único, cabendo lembrar que todos os cidadãos dos Estados membros têm, além da sua cidadania originária, a cidadania da União Européia com seus direitos no espaço comum.

O alargamento promoveu a extensão geográfica por adesão negociada ao projeto comunitário europeu e às exigências do seu acervo. Da Europa dos 6 de 1957 se passou, em 1995, por via de quatro alargamentos (1973, 1981, 1986, 1995), para a dos 15. O término da guerra fria e o fim da bipolaridade levaram às transformações econômicas e políticas do Leste Europeu que ensejaram com sua incorporação a consolidação democrática continental. Daí em 2004, com o quinto alargamento, a Europa dos 25 e, neste ano, a dos 27. Todo alargamento representou a busca de um novo equilíbrio, mas cabe registrar que os últimos, que contemplaram a Europa Oriental, vêm trazendo dificuldades próprias de uma mutação de escala.

O aprofundamento é representativo do contínuo adensamento da integração da Europa Comunitária. Este adensamento no plano institucional trouxe, desde o início, uma transferência de competências dos Estados membros para a Europa Comunitária - hoje inequívoca no pilar da integração econômica e monetária. Em matéria de teoria política, o aprofundamento é uma novidade no clássico capítulo da divisão de poderes e nas técnicas das distribuições de competências concebidas pelo federalismo. A originalidade reside na aceitação de valores comuns; nos poderes postos a serviço destes valores e na autonomia concedida a estes poderes para efetivá-los.

Nesta matéria cabe destacar as funções da Comissão, do Tribunal e, mais recentemente, do Banco Central Europeu. A Comissão é um órgão supranacional incumbido de defender o interesse geral da União Européia, de gerir e executar as políticas comunitárias, dispondo do direito de iniciativas legislativas e da capacidade de representação diplomática. O Tribunal encarrega-se de zelar pela prevalência do direito comunitário no espaço europeu e tem contribuído para a construção européia por meio de uma interpretação teleológica. O Banco Central Europeu, instituído em 31 de junho de 1998, define a política monetária da União Européia, introduziu e administra o euro, a moeda que, em 1º de janeiro de 2002, passou a circular em 12 Estados membros em substituição às moedas nacionais.

É certo que atualmente a União Européia enfrenta dilemas para levar adiante o seu processo e digerir o que já logrou, num mundo que é muito diferente do de 1957. Entretanto, o fato é que a experiência européia na construção da paz e da prosperidade regida pelo Direito é, para falar com Kant, um sinal da possibilidade do progresso humano. Daí a sua dimensão exemplar de alcance geral que transcende a região, pois a Europa Comunitária tem sido, por obra de sua identidade política, também no plano geral, uma força em prol da paz, da diplomacia e do multilateralismo. Por isso pode ser qualificada como um bem público internacional.

Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC

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