Confissões de Cho Seung-hui, que matou
32 pessoas numa universidade, ajudam a
entender esse tipo de tragédia americana
Duda Teixeira
Fotos de Alan Kim/AP. NBC/AP |
Cho Seung-hui numa das fotos que enviou à rede de TV e, no detalhe, uma de suas vítimas: ele deu mais de 100 tiros antes de se suicidar |
VEJA TAMBÉM
|
A cada novo massacre numa escola dos Estados Unidos, as perguntas se impõem: o que leva alguém a cometer crime tão perverso e gratuito? Por que isso ocorre nos Estados Unidos? Diante da dificuldade das questões, muitos tentam responder com uma manjadíssima coleção de clichês. Ouvem-se então perorações sobre os efeitos nefastos da competitividade exacerbada nas escolas e de outras supostas características maldosas da sociedade americana. No caso de Cho Seung-hui, o estudante de 23 anos que na semana passada matou a tiros 32 colegas e professores em uma universidade no estado da Virgínia, mais conhecida por Virginia Tech, não sobra muito espaço para o sociologuês: Cho era desequilibrado mental. Qualquer influência externa é menor diante do fato de que ele vivia em um mundo próprio, nebuloso e encerrado dentro de sua mente. Todos os que conviveram com o assassino, até seus parentes próximos, são unânimes a respeito de seu comportamento fora do comum. Em 2005, ele foi avaliado num centro psiquiátrico e, por ordem judicial, deveria se submeter a terapia psicológica. Infelizmente, ninguém chegou a perceber a tempo que o jovem, nascido na Coréia do Sul, era uma bomba prestes a explodir.
Também sabemos bastante sobre a precariedade emocional de Cho porque contamos com a ajuda do próprio assassino. Sua percepção distorcida da realidade foi escancarada num depoimento delirante, composto de fotos, vídeos e textos, que ele enviou à rede de televisão NBC no dia do crime. Só nos romances policiais se imaginaria uma cena dessas: num intervalo na matança, o assassino encontrou tempo para ir a uma agência de correio e, tranqüilamente, despachar um dossiê com sua versão dos acontecimentos. No material, ele posa de Rambo com suas pistolas semi-automáticas, faz gestos ameaçadores e declarações obscuras. Ao falar diante da câmera, não se dirige a ninguém em especial, ainda que se refira algumas vezes aos colegas mais ricos donos de "Mercedes" e "colares de ouro". O estudante parece responsabilizar todo mundo, exceto a si próprio, pelos crimes que cometeu: "Vocês tiveram um bilhão de chances e formas de evitar esse momento. Mas vocês decidiram derramar meu sangue. Me encurralaram e me deram apenas uma opção. Agora vocês têm sangue nas mãos e nunca vão conseguir lavá-lo". "Cho estava desmoronando psicologicamente e preferiu atribuir isso a forças externas", disse a VEJA o americano Jerrold Post, professor de psiquiatria e psicologia política da Universidade George Washington. "É um comportamento paranóico, comum também entre terroristas."
Tiroteios em escolas e universidades não são uma exclusividade americana. Nos últimos doze anos, casos foram registrados na Inglaterra, na Alemanha, na Austrália e no Canadá. Nos Estados Unidos, porém, são incrivelmente mais comuns. Na última década, ocorreram pelo menos dez casos em que cinco ou mais pessoas foram feridas. Em parte, o fenômeno é explicado pelo efeito imitação. Crimes como esse são amplamente divulgados e seus autores ganham fama instantânea, o que acaba incentivando outros a repetir o feito. "O massacre na Virgínia é uma cópia dos assassinatos do colégio Columbine e da Universidade do Texas, em 1966", afirma Antonio Abad, psiquiatra da Universidade de Nova York. Num dos vídeos, Cho deixa clara sua admiração pelos dois adolescentes que massacraram treze pessoas em Columbine, em 1999, e os chama de "mártires". Ele próprio afirma que gostaria de servir de exemplo para outros a fazer o mesmo. "Morro como Jesus Cristo para inspirar gerações de fracos e indefesos." Apenas três dias depois do assassinato na Virgínia, um estudante da Califórnia avisou à família e ao padre de sua igreja que faria o último massacre parecer pequeno, obrigando a polícia a fechar 36 escolas do estado.
Cho Seung-hui não é um representante típico dos estudantes americanos. Da mesma forma que Dylan Klebold e Eric Harris, os autores do massacre em Columbine. A única coisa que indivíduos perturbados como esses três têm de tipicamente americano é acesso fácil a armas de grande poder de fogo. Cho usou duas armas. A primeira delas, comprada legalmente há pouco mais de dois meses, era uma Glock 19, semi-automática capaz de disparar um pente inteiro de quinze balas em uns poucos segundos. Pagou pela arma e por cinqüenta balas o equivalente a 1 160 reais. A outra era uma Walther P22, com carregador de dez balas. Para comprar seu arsenal, Cho precisou apenas apresentar três tipos de identificação e esperar uma consulta a antecedentes criminais, que não demorou mais do que vinte minutos. O raciocínio, de qualquer forma, nem sequer arranha o fato concreto: não existe forma totalmente segura de proteger a sociedade de ataques de psicopatas.
Há uma intensa discussão nos Estados Unidos sobre o controle de armas. A maioria dos americanos é favorável a restrições, mas não à proibição total. Em parte, porque já existem armas demais em circulação e não seria possível recolher todas elas. Mas também porque acham que precisam delas para autoproteção. Há 290 milhões de armas no país, quase uma por habitante, mas as taxas de homicídio são menos de um terço das registradas no Brasil, onde a venda de armas é restrita. No estado da Virgínia, as leis sobre posse de armas estão entre as mais brandas. Até crianças de 12 anos podem portar armas no estado, desde que tenham autorização dos pais. A cidade de Blacksburg, com 40 000 habitantes, teve apenas três assassinatos e 136 assaltos nos últimos seis anos. "As pessoas costumam deixar a porta de casa aberta. Nunca escutamos notícias sobre roubos", disse a VEJA a bioquímica gaúcha Patricia dos Santos, pesquisadora na Virginia Tech.
Charles Dharapak/AP |
A dor do dia seguinte: cerimônia pelos mortos na universidade Virginia Tech |
O assassino de Virginia Tech tinha 8 anos quando sua família decidiu tentar vida nova nos Estados Unidos. A Coréia do Sul era um dos Tigres Asiáticos, mas a prosperidade não atingia a família Cho, que vivia num porão na periferia de Seul. O pai era dono de um sebo e a mãe, faxineira. Nos Estados Unidos, a família abriu uma lavanderia em Centreville, cidade pacata a 360 quilômetros de Virginia Tech. Como todo imigrante, de uma hora para outra Cho sentiu-se parte de uma minoria. Um sentimento de inferioridade não é raro nessas circunstâncias. O sucesso da irmã, graduada em Princeton, pode ter tornado as coisas piores porque, de acordo com a tradição coreana, os filhos devem ser melhores que as filhas. Nada disso explica o surto homicida. Uma tia-avó de Cho, Kim Yang-Sun, 85 anos, de Seul, diz que o comportamento estranho do rapaz era bem conhecido da família. Segundo ela, ele foi diagnosticado como autista logo que chegou aos Estados Unidos.
"Ele era muito quieto e somente seguia sua mãe e seu pai. Quando os outros chamavam pelo seu nome, ele apenas respondia sim ou não. Nunca mostrava nenhum sentimento ou acenava", diz Kim. O colega de quarto dele na universidade, Joseph Aust, um aluno de engenharia elétrica, relata que Cho "ficava sentado na sua mesa, apenas olhando fixamente para o nada. Era algo esquisito, mas que passava". Segundo a tia-avó, a família, apesar de saber do diagnóstico, não procurou tratamento por falta de dinheiro. Pessoas com autismo podem reagir com um pouco de violência quando contrariadas, mas dificilmente cometem um crime dessa magnitude e tão bem planejado. "Um autista não usaria uma linguagem metafórica como ele fez ou imputaria a culpa a outros pelos seus atos", diz o neuropediatra Mauro Muszkat, da Universidade Federal de São Paulo. "Com certeza, ele teve um surto psicótico, mas não dá para saber qual é."
Na universidade, Cho revelou-se um jovem depressivo, que não tinha amigos nem namorada. Falava aos sussurros, não respondia às perguntas dos professores em aula e raramente pronunciava mais de duas palavras. Andava sempre de boné e óculos escuros. "Cho se encaixa perfeitamente no perfil dos protagonistas de assassinatos em massa que agiram em escolas e deixou um volume considerável de informações sobre ele", disse a VEJA James Alan Fox, professor de justiça criminal da Universidade Northeastern. Nas aulas, o comportamento de Cho assustava professores e colegas. Escreveu peças de teatro violentas e cheias de palavrões, a ponto de a professora de redação criativa, a poetisa Nikki Giovanni, expulsá-lo da classe. Em duas ocasiões, Cho foi denunciado por assédio sexual. Um especialista que o examinou, por ordem judicial, concluiu que ele representava perigo para si próprio, mas não para os outros. Agora é fácil dizer que Cho devia ter sido internado. Mas até a semana passada ele não havia machucado ninguém nem feito nenhuma ameaça específica.
Por volta das 7h15 da manhã de segunda-feira, Cho entrou num alojamento de estudantes e fez suas duas primeiras vítimas. Às 9h15, depois de passar no correio, entrou num prédio de salas de aula. Então andou por elas, uma por uma, tentando matar qualquer um que estivesse à vista. Segundo os sobreviventes, não disse palavra. Deu mais de 100 tiros e recarregou as duas armas várias vezes. Enquanto Cho promovia a chacina, estudantes desesperados pulavam pela janela do 2º andar do edifício, alguns se fingiam de mortos e outros tentavam barrar a entrada dele nas salas. Ele continuou matando até a polícia invadir o prédio. Então se suicidou com um tiro no rosto.
Com reportagem de Denise Dweck e Thomaz Favaro
A INSPIRAÇÃO PARA O CRIME
No material que enviou à televisão no intervalo entre suas matanças, Cho deixa perceber que se inspirou em outros assassinos e no cinema. A referência mais óbvia são Eric Harris e Dylan Klebold, que mataram treze pessoas em Columbine, em 1999 (à dir.). O estudante da Virgínia fala dos "mártires" Eric e Dylan. Eles também deixaram um vídeo com depoimentos. Duas das 43 fotografias que estavam no pacote são nitidamente inspiradas no filme Oldboy, do diretor sul-coreano Chan wook Park, de 2003. Em uma delas, Cho posa em tom ameaçador com um martelo, arma que não usou na chacina. Em outra, aponta um revólver para a cabeça. No filme, o personagem ataca várias pessoas para descobrir por que razão ficara preso durante quinze anos.
|
VÍTIMAS DE TODO O MUNDO
|
1. Por que é tão fácil obter uma arma nos Estados Unidos? O porte privado é pouco regulamentado, e cada estado aplica suas próprias leis sobre as permissões para compra, posse e controle de armas. Em 43 estados, por exemplo, não é necessário ter licença ou registro para obter uma. No Texas e em outros cinco estados, não há idade limite para obtê-las. |
• topo |
2. Por que o controle do estado nesse tema é tão tênue? O direito de possuir um arma está ligado à fundação dos Estados Unidos e é visto como a conquista de uma liberdade individual. Tanto assim que a Constituição dedicou um trecho específico ao tema - a famosa Segunda Emenda, de 1791. O texto diz: "Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido." |
• topo |
3. Tragédias como a ocorrida na Virgínia podem provocar mudanças na lei? Depende dos rumos da discussão no interior da sociedade americana. Porém, especialistas adiantam que mudanças drásticas são improváveis. Isso porque, como explicado no item anterior, a posse de armas é vista como um direito conquistado. Segundo pesquisas, dois terços dos americanos são contra o controle das armas. |
• topo |
4. O assunto entrou para o debate da sociedade e da classe política dos EUA? Sem dúvida. Imediatamente após a tragédia da Virgínia, a mídia recolocou o assunto em pauta. O influente jornal The New York Times incentivou abertamente a intervenção do estado no assunto: "O que é necessário, urgentemente, são controles mais fortes sobre as armas letais que causam tal carnificina devastadora e perdas irreparáveis." Alguns políticos também vieram a público dizer o que pensavam e espera-se que o assunto entre na agenda da campanha da sucessão presidencial de 2008. |
• topo |
5. Qual a posição dos democratas a respeito? Os democratas não tomaram posição clara. Anteriormente, porém, a pré-candidata à Casa Branca Hillary Clinton havia sugerido a criação de uma carteira com foto para identificar os portadores de armas, além de um registro nacional de vendas. John Edwards e Barack Obama, outros presidenciáveis, já fizeram discursos parecidos. Porém, os democratas temem endurecer o discurso. Na avaliação deles, em 2000, o então candidato Al Gore perdeu votos no sul do país ao propor a obrigatoriedade de registro aos portadores de armas. |
• topo |
Logo depois das 33 mortes na Virgínia, o ex-prefeito de Nova York e pré-candidato à presidência Rudy Giuliani foi taxativo: "O direito de portar armas é garantido pela Constituição. Esse direito, é claro, não será ferido." |
• topo |
7. Muitos americanos possuem armas? Cerca de 34% da população; há cerca de 200 milhões de armas nas mãos dos civis. Além disso, mais de 300 empresas produzem armas no país. |
• topo |
8. Por que episódios como o ocorrido na Virgínia são relativamente comuns nos EUA? Os especialistas se dividem nessa questão. Entre as razões, aparecem desde a facilidade de acesso a armas até a violência advinda dos videogames. Os especialistas destacam a "banalização da violência" na cultura americana, calcada no hábito da disputa exacerbada em que o "vencedor leva tudo" e o "perdedor perde tudo". Ao protagonizar episódios trágicos, os atiradores viveriam, segundo essa ótica, seu dia de "vencedores". |
• topo |
9. Quais foram os demais episódios similares ocorridos nos últimos anos? O caso mais recente ocorreu em setembro de 2006, quando um estudante invadiu uma escola rural do Condado de Richland, no Wisconsin, disparando um rifle e uma pistola: o diretor saiu gravemente ferido. Mas o caso que chocou o país ocorreu em abril de 1999: dois estudantes mataram 12 colegas e uma professora no Colégio Columbine, em Littleton (Colorado), antes de se suicidarem. |
• topo |
10. Os estudantes podiam portar armas na Universidade da Virgínia? Na maior parte do campus, não. Curiosamente, a proibição foi alvo de críticas após a tragédia. A Liga da Defesa dos Cidadãos do estado sugeriu a liberação, alegando que bastaria que uma das vítimas do massacre estivesse armada para que o assassino fosse contido. |
• topo |
11. As universidades americanas podem tomar alguma medida preventiva? Escolas e faculdades já vêm adotando medidas nos últimos anos, como a adoção de sistemas de cartões magnéticos para controlar a entrada de pessoas. Pais pedem às autoridades que os estabelecimentos sejam reforçados com guardas e detetores de metais. Há ainda a sugestão de um sistema de pânico: em caso de emergência, qualquer pessoa da escola ou universidade poderia escrever uma mensagem, apertar um botão e disparar o alerta para todos. |