Esta é a receita de um “paizão da Federação”: acata a reivindicação de aumentar de 22,5% para 23,5% o repasse do Fundo de Participação dos Municípios, “dá ordem” para que o 1% seja imediatamente aprovado por sua base política, é aplaudido entusiasticamente por 3 mil prefeitos e, em meio às palmas, promete turbinar ainda mais as 5.560 prefeituras do País com facilidades para que possam firmar convênios com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Inebriado pelo grito de “Lula outra vez”, o orador estica a fala magnânima e anuncia que aumentará o valor do Bolsa-Família, colocando um adicional de 16% acima da inflação no bolso de 11 milhões de famílias. Que ninguém pense que o Todo-Generoso age como cabo eleitoral. Ele deixa claro que oferece o presente, agora, na entressafra das eleições. Enfeitiçados, os alcaides nem percebem a trama do jogador de truco, que trocará a gorjeta de R$ 1,3 bilhão - a ser repartido anualmente pelas municipalidades - por R$ 32 bilhões, montante que o governo arrecada por ano com a CPMF. Como assim? Piscadela de olho à parte, Lula deverá conseguir no Congresso a prorrogação da famigerada sigla, também conhecida como o imposto do cheque, até 2011. Cruz, credo! Por que apenas até o final do segundo governo Lula? Deixemos que o leitor dê a resposta mais adiante.
Sejamos, porém, justos. Dom Luiz do Terceiro Milênio pode fazer o que bem entender após cem dias estáticos, dedicados a tirar férias; montar a equipe do segundo mandato; insistir na linha de discursos e metáforas repetitivas, agora pontilhadas de portunhol exótico; anunciar o tal PAC; e cimentar o gigantesco mosaico de apoios, usando para tanto o magnetismo pessoal e a força do presidencialismo imperial. A hipótese de fazer o que lhe der na cuca tem fundamento. O homem acaba de se banhar com quase 64% de apoio do povo ao desempenho pessoal, índice que é quase 15% maior do que a taxa de aprovação do eleitorado ao seu governo. Se um perfil com imenso carisma pessoal se senta no trono do presidencialismo, não há o que contestar. O imperador-presidente-carismático não está nem aí para as críticas. Ainda mais, quando as cobranças partem de oposições amorfas, de líderes carcomidos por histórias pregressas e de análises que não chegam aos olhos e ouvidos da massa.
“Se queden tranquilis”, responde o presidente gozador a quem faz perguntas embaraçosas. E com muita tranqüilidade aplaina o barro da estrada que percorrerá nos próximos 3 anos 8 meses e 15 dias. Toda manhã, ao acordar, Lula calcula duas equações para continuar no pódio. A primeira é para dar força aos 63% que vivem na base da pirâmide social. Já conseguiu retirar 10 milhões de pessoas das classes D e E e colocá-las na classe C. Um tento. Sabe que os 5% do andar mais alto têm mil maneiras de encher as burras e não são tão afetados pela agenda governamental. Mas a parte do meio, os 32%, ele deixa ao deus-dará. Se o poder de compra das classes pobres melhorou, o mandatário recebe o troco com uma montanha de aplausos.
A segunda equação que mexe com a cabeça de Lula é a divisão do bolo tributário. De um total que ultrapassa R$ 600 bilhões, a União fica com 61%, os Estados ganham 24%, restando aos municípios apenas 15%. Apesar da descentralização tributária efetuada no bojo da Constituição de 88, o modelo continuou torto, a partir do cipoal de legislações, como as 27 que regulam o ICMS, uma para cada Estado. A União nunca se desfez da excessiva centralização das receitas em sua esfera, aliás, prática herdada do Brasil rural, quando o País era administrado como uma fazenda. (Há quem veja nas expressões fazenda pública, ministério e secretaria da fazenda traços da concepção da velha cultura ruralista, que teima em manter raízes.) Apesar de inúmeras propostas para reforma do modelo geral de tributação, a União sempre refuga sua aprovação.
Explica-se, assim, o caráter imperial do presidencialismo brasileiro. O arranjo federativo transforma o riozinho de baixo em afluente do oceano de cima. O artigo 23 da Carta Magna - que trata da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios - nunca foi regulamentado. E, é claro, não interessa ao atual imperador-presidente que o seja. No dia em que as competências e respectivas receitas para arcar com as áreas ali descritas forem estabelecidas, desmonta-se a atual arquitetura de arrecadação. Como se sabe, o redesenho do pacto federativo tem sido a principal reivindicação dos prefeitos. Que, agora, por ocasião da 10ª Marcha em Defesa dos Municípios, vibram de satisfação porque o mimo do “bilhãozinho e pouco”, presente da Corte, ofertará, em média, R$ 264 mil a cada prefeitura. Sob esse prisma, ganha significação o desabafo presidencial: “A reforma tributária que está no Congresso não interessa mais ao governo.”
Entenderam? Caixa locupletado com a prorrogação da CPMF, cofres de municípios um pouco mais recheados, massas de barriga cheia, economia navegando no piloto automático, para que fazer reforma tributária?
Os governadores começaram a chiar, porque suas reivindicações, feitas há um mês no encontro na Granja do Torto, permanecem no ar. Querem maior participação na distribuição da Cide, além de um fundo com garantias para perdas da Lei Kandir e renegociação das dívidas. Não terão tudo, mas algum colírio pingará, até porque o modus operandi de Luiz Inácio Lula da Silva se inspira no lema “uma no cravo, outra na ferradura”. Resta a promessa do ministro da “fazenda” (quer dizer, da economia, das finanças), Guido Mantega, de providenciar para julho/agosto uma proposta de reforma tributária “mais definitiva e mais avançada que a atual”. A conferir.
E assim, com embromação e matreirice, o presidente exibe a interlocutores, correligionários e adversários como consegue pôr o ovo na posição vertical, como fez Colombo, quando quebrou um pouco da casca de uma das pontas. Basta ter à mão a solução mais simples e natural. Lula tem sabido tirar partido da obviedade.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautor@gtmarketing.com.br