Suely Caldas*
Felizmente prevaleceu o bom senso e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, recuou da idéia. Ele não deveria tê-la anunciado antes de estudar seus efeitos. Mas o fez e na linha-padrão Mantega: entusiasma-se com uma idéia (sobretudo se ela agrada aos políticos), apressa-se em divulgá-la como algo inusitado e inovador de um time imbatível que ele levou para a Fazenda, mas frustra-se quando os experientes técnicos de terceiro escalão - estes sim tarimbados no assunto - descobrem ser inviável.
Na última segunda-feira, Mantega anunciou que o governo iria rever os contratos das dívidas dos Estados e municípios com a União para permitir a elevação do limite de endividamento a um valor equivalente não mais a um, mas a dois anos da receita líquida de cada unidade da federação. No dia seguinte já não era nada disso; o limite ficaria mesmo em um ano da receita, porque a idéia inovadora elevaria as dívidas dos Estados em nada menos que R$ 140 bilhões. “É uma continha salgada”, disse Mantega.
Foi, no mínimo, imprudência, inexperiência ou desconhecimento da história recente. Afinal, até a renegociação das dívidas dos Estados, iniciada em 1997 e completada em 2000, governadores e prefeitos de grandes cidades abusaram do endividamento sem limites para financiar seus sempre exagerados gastos. Ora usavam os bancos estaduais para emitir títulos, que vendiam no mercado (leia-se recebiam dinheiro vivo e deixavam a dívida para o próximo governador, que não pagava e deixava para o próximo, e este para o próximo...), ora sacavam dos cofres das empresas distribuidoras de energia elétrica à título de empréstimos, que não pagavam, ora comprometiam suas arrecadações de impostos oferecendo-as em garantia em “créditos” contraídos com bancos privados a taxas de juros elevadíssimas (chamadas Adiantamentos de Receita Orçamentária - AROs). Quando todas essas torneiras foram fechadas inventaram os precatórios, que vendiam com enorme deságio para fundos de pensão de estatais. Tudo valia, o importante era fabricar dinheiro para gastar. A farra acabou quando o governo FHC decidiu que a União assumiria todas as dívidas, mas fez constar em contrato que os Estados só poderiam contratar novos créditos quando o valor total da dívida fosse inferior à receita líquida anual.
O ministro Mantega já era um veterano economista do PT quando tudo isso aconteceu. Portanto, tinha obrigação de conhecer essa história. Natural que dele se espere cuidado e não açodamento ao falar de um assunto explosivo que já causou prejuízos graves para a população, a quem sempre cabe pagar a conta final das aventuras dos políticos. Mas, felizmente, Mantega foi despertado pelo terceiro escalão e decidiu voltar atrás. Se ele quer mesmo encontrar uma alternativa, o próximo passo é pedir à sua assessoria que faça um levantamento sobre os ajustes ou desajustes feitos por cada Estado, depois da negociação encerrada em 2000.
O último número da revista Conjuntura Econômica, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), traz um breve resumo da trajetória da relação entre endividamento e receita líquida dos Estados, entre 2000 e 2006. Enquanto Espírito Santo (de 0,98 para 0,33), Piauí (de 1,73 para 0,75), Paraíba (de 1,53 para 0,76) e Mato Grosso (de 2,5 para 1) reduziram substancialmente suas dívidas em relação à receita, Alagoas (de 2,23 para 2,15) e Rio Grande do Sul (de 2,66 para 2,54) administraram mal e continuam apresentando situação muito preocupante. Portanto, há Estados que aprenderam e hoje se enquadram nas exigências para contrair novos créditos, mas há os renitentes, que continuam gastando mais do que podem e estão impedidos de obter empréstimos para financiar investimentos.
Importa agora que o ministro e sua equipe estudem a questão a fundo e avaliem seus efeitos antes de fazer qualquer novo anúncio público e ter de recuar depois, produzindo desgaste político para seu chefe Lula junto a governadores ávidos por empréstimos de organismos internacionais de crédito, como o Banco Mundial.
Aliás, não é a primeira vez que Mantega escorrega ao buscar uma solução para o problema. Há duas semanas ele anunciou que o governo federal iria autorizar governadores a refinanciar suas dívidas com a União, em condições mais favoráveis, junto a bancos privados. A idéia inovadora acabou esquecida diante do absoluto desinteresse dos bancos privados.
*Suely Caldas é jornalista. E-mail: sucaldas@terra.com.br