Creio já ter tido a oportunidade de ocasionalmente mencionar aqui meu grande amigo e companheiro de boteco Carlinhos Judeu, com quem convivo quase todo fim de semana desde a era cenozóica, ou qualquer que seja o nome do tempo em que a juventude acha que ficamos adultos. Na verdade, creio que devo confessar a razão pela qual nunca escrevi mais prolongadamente sobre ele. A vida de Carlinhos, que causaria inveja de Casanova a Rockfeller, requereria a dedicação de um biógrafo experiente e incansável, porque, como é do conhecimento de todos os que freqüentam o renomado boteco Tio Sam, o que Carlinhos já viu, viveu e sabe daria para lotar as prateleiras de uma estante. Além disso, a revelação pública de suas proezas no setor Casanova poderia causar justificadíssima revolta entre namorados, noivos, maridos e pais por este mundo afora, de maneira que revela prudência quem deixa para os pósteros o laborioso inventário dos feitos dele entre as damas. Mas sei, por exemplo — e divulgo em primeira mão — que Bimba Gogó de Prata, nos raros intervalos de sua agenda de seresteiro, já está rabiscando um escorço preliminar, provisoriamente intitulado “Alcovas em chamas: A vida fogosa de um incendiário de corações”. Bimba, que é formado em tudo, de aviador a advogado, é também uma pena de respeito e tenho certeza de que será um best-seller. No verdor de seus setentinha, Bimba ainda vai longe.
Mas, vejam, me entusiasmo com meus amigos e companheiros e acabo podendo ser acusado, tanto entre vocês como na Redação, de deplorável usuário de nariz-de-cera ou de enchedor de lingüiça.
Quiçá o seja, mas é sem querer. Sempre tive o temperamento muito patriótico e aí me avassala o apego pelos meus dois territórios, o de Itaparica e o do Leblon, em todo o orbe sem rivais. Mil perdões, procurarei conter o afeto que se encerra em meu peito geriátrico e rápido vou ao ponto. É que, no domingo passado, ao chegar eu para o expediente, Carlinhos bateu na cadeira para que eu me sentasse logo e fez sinal de que tinha algo importantíssimo a dizer.
De fato, tinha. Nada como a experiência, o tirocínio e a inteligência do indivíduo — é por isso que me orgulho de meus amigos. Não vou sequer tentar reproduzir o que ele disse, nem que eu fosse um desses celulares que, além de falar, passam roupa a ferro, filmam longas-metragens, afastam mosquitos e curam mau hálito. Mas, em suma, ele primeiro me explicou que tinha batido na cabeça dele, com surpreendente e imperdoável atraso, o que de muito já lhe devia ter ocorrido.
Ou seja, nós dois éramos praticamente os únicos otários que ainda estavam fora do esquema.
Está todo mundo se fazendo — disse Carlinhos — do Homem, que outro dia disse que já tinha chegado ao ápice de um ser humano, a dr.
Mangabeira Unger, que outro dia estava pedindo impeachment para ele e agora é ministro do Que Der e Vier, ou qualquer coisa assim.
Não interessava. O fato estava na cara e só não víamos porque estávamos sendo burros. Dr. Antônio Carlos, com aquela santa boquinha que Deus lhe deu, disse no Senado que o maior ladrão (atenção, quem disse foi o senador, eu só estou dizendo o que ouvi o senador dizer e até gravei) é o presidente da República, e depois trocaram visitas, por iniciativa do presidente. Dr. Mangabeira só faltou partir para o xingamento corporal, como dizia Waltinho Filósofo. Aí o xingado o nomeou ministro e ficou o dito por não dito. Todos os que xingaram ou podiam ter xingado o governo, ou o presidente, foram nomeados ministros ou coisa por aí. Todo mundo sabe que tem emprego para todo mundo nesse governo, basta assinar aqui, ou meter o dedão mesmo.
E, desculpasse-o eu, agora ele estava diante de quem? De quem? De um grande amigo seu, o que não o impedia de ser ao mesmo tempo o maior trouxa deste país. E ele quase chega junto, mas não chegou. Sim, ele sabia que eu viria com esse lero-lero de “não quero ser ministro”, “já falei mal do Homem a torto e a direito”, “não me corrompo” e outros besteiróis próprios dos poetas e otários, mas não vinha ao caso. Se eu não queria ser ministro, ele queria. Tudo o que eu precisaria fazer era passar a elogiar o presidente assim que Carlinhos fosse nomeado ministro, amigo é para essas coisas.
Besteira minha, mas, tudo bem, então não passasse logo a elogiar, para não dar na vista, já que eu tinha essas frescuras que ninguém tem, talvez algum jegue lá em Itaparica. Mas parasse de esculhambar, mesmo porque eu mesmo dissera que não havia nada para esculhambar, já que nada no governo começara ainda. E, quando eu soubesse qual seria o ministério dele, não ia ter condições, perante os outros homens, de negar apoio. Porque, ficasse eu sabendo, ele seria ministro da Afirmação Feminina. Isso mesmo! Quando lhe ponderei que as mulheres não iriam permitir que esse ministério fosse ocupado por um homem, ele riu e disse que às vezes pensava que Cuiúba estava certo, eu tenho um problema na idéia mesmo. A primeira coisa que ele ia fazer era convencer o Homem — e o Homem ia topar logo porque, esse, sim, não é otário — a baixar uma Medida Provisória decretando que as mulheres são superiores em todos os sentidos.
“Meu slogan vai ser ‘a mulher tem sempre razão’”, disse ele. Sacou? Achava eu que as mulheres iam ficar contra um ministro desses, elas iam ver logo que uma ministra não ia ter condições de fazer isso, tinha que ser homem, seu besta. O tempo me ensinaria, eu demorava mas aprendia.
Está na cara que o Homem quer presidência perpétua e não necessariamente das mais democráticas.
Eu ia terminar compreendendo que é isso que todo brasileiro quer, contanto que haja Bolsa Família. E, quando ele se coroar imperador em 2014, é sangue-bom o suficiente para me nomear visconde do Leblon — quem sabe eu não chego lá, se deixar de fumar?
Entrevista:O Estado inteligente
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