Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 21, 2007

Furacão nos tribunais brasileiros

Furacão da limpeza

Na maior devassa da história do Judiciário, a polícia
prende juízes sob suspeita de vender decisões – e dá
início a uma faxina que tem tudo para fazer bem ao país


Alexandre Oltramari

Montagem com fotos de Andre Dusek/AE, Alaor Filho/AE, Celso Meira/Ag. O Globo, Eduardo Nicolau/Ae, Ed Ferreira/AE e reprodução
Cenas da operação policial que iniciou uma devassa nos tribunais: liminares custam entre 600 000 e 1 milhão de reais




Na madrugada de 23 de novembro, uma quinta-feira, um delegado e dois agentes da Polícia Federal entraram discretamente num escritório de advocacia no número 121 da Rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro. A sala pertence ao escritório Borges, Beildeck e Medina Advogados, e um dos sócios é Virgílio Medina, irmão do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Paulo Medina. Durante uma hora e quinze minutos, numa ação sem precedentes na crônica policial brasileira, os policiais fizeram filmagens, tiraram fotografias e, com uma máquina portátil, fotocopiaram documentos, planilhas, anotações. Encerrado o trabalho, fecharam silenciosamente a porta do escritório e saíram sem deixar pista de sua passagem pelo 6º andar do edifício. Com ações inéditas como essa, a Operação Hurricane (furacão, em inglês), que levou 25 pessoas à cadeia, deu início à maior devassa já sofrida pela Justiça – e, no escritório da Rua do Ouvidor, encontrou fortes evidências de venda de decisões judiciais, num esquema criminoso que pode ter chegado ao STJ, a mais alta corte do país para assuntos não-constitucionais.

Na sexta-feira passada, o bote sobre a Justiça continuou com a Operação Têmis, nome da deusa da Justiça na mitologia grega. Desta vez, cerca de 300 policiais federais cumpriram setenta mandados de busca e apreensão e vasculharam o gabinete de três desembargadores do Tribunal Regional Federal em São Paulo – Roberto Haddad, Nery da Costa Júnior e Alda Basto. Além deles, os agentes federais estiveram no gabinete de dois juízes da Justiça Federal paulista, Djalma Moreira Gomes e Maria Cristina Cukierkorn. A suspeita investigada em relação aos cinco magistrados é a mesma: a existência de um esquema clandestino de venda de sentenças e liminares, quase sempre destinadas a beneficiar empresários que exploram o jogo ilegal, sobretudo casas de bingo que operam com máquinas de caça-níqueis, o que é proibido por lei desde 2000. O esquema incluiria o pagamento de mesadas de 20 000 a 30 000 reais a desembargadores, juízes e outros funcionários públicos. Até a noite de sexta-feira, o único dos cinco magistrados a falar sobre o assunto foi a juíza Maria Cristina Cukierkorn. Ela interrompeu a licença-maternidade, voltou ao seu gabinete e, por meio da assessoria de imprensa, declarou-se "perplexa" com as investigações. Afirmou que não faz idéia do motivo de ter sido incluída na operação.

Reprodução/STJ
MINISTRO À VENDA
O ministro Paulo Medina, do STJ, é a maior autoridade investigada pela PF na Operação Hurricane. Seu irmão, o advogado Virgílio Medina, foi preso depois de ser pilhado negociando três decisões do ministro. Uma delas, que beneficiava a máfia da jogatina, saiu por 600 000 reais. Foi deferida por Medina nos termos exatos do que foi acordado duas semanas antes entre seu irmão e a máfia dos bingueiros. O ministro diz que é honesto e que não sabia das negociatas.

No Brasil, o governo federal e o Congresso Nacional já foram alvo de amplas investigações desde que o país voltou ao regime democrático, em 1985. No Executivo, aconteceu o impeachment de um presidente e a recente demissão de ministros envolvidos em ilicitudes. No Legislativo, descobriu-se a existência da máfia dos anões que assaltava o Orçamento da União e, mais recentemente, vieram à luz os mensaleiros e sanguessugas. Mas é a primeira vez que uma devassa se realiza na banda podre da Justiça – o que é uma notícia alvissareira para o país. Já houve casos envolvendo magistrados corruptos, como os desvios de dinheiro na construção do TRT que levaram o juiz Nicolau dos Santos Neto à cadeia em 2000 ou a venda de sentenças que resultou na prisão do juiz João Carlos da Rocha Mattos em 2003, mas nunca uma ofensiva policial envolvera magistrados em diversas instâncias da Justiça, sugerindo a existência de uma rede criminosa. Só na Operação Hurricane, três desembargadores foram parar atrás das grades – e o ministro Paulo Medina, do STJ, mesmo sem ser preso, foi parar no olho do furacão. É a mais alta autoridade do Judiciário sob investigação.

O ministro Paulo Medina é suspeito de vender liminares com a ajuda de seu irmão, o advogado Virgílio Medina. Com gravações telefônicas, escutas ambientais, filmagens e fotografias, a Polícia Federal documentou Virgílio Medina vendendo três decisões judiciais do irmão. Uma delas, a favor de empresários de casas de bingo no Rio de Janeiro, custou, segundo a polícia, 600.000 reais. "Sou um homem rigorosamente de bem, da prática do bem que realizo em toda a minha vida", disse o ministro Medina numa nota divulgada no domingo passado. No inquérito de 2 878 páginas, ao qual VEJA teve acesso, Virgílio aparece negociando a propina com o advogado Sérgio Luzio Marques de Araújo, da empresa Betec Games, que tinha 900 máquinas caça-níqueis apreendidas pela Justiça. A empresa queria liberá-las. Em dezenas de telefonemas e três encontros pessoais, Virgílio e o advogado da Betec discutem valores. No começo, era 1 milhão de reais. "Tem 20% de entrada", diz Virgílio, num dos diálogos grampeados. O preço caiu para 600.000 reais num telefonema de seis minutos no dia 1º de agosto do ano passado. Duas semanas depois, o ministro Paulo Medina deu uma liminar cancelando a apreensão das máquinas. Era uma decisão tão esdrúxula que chamou a atenção da PF e acabaria revogada mais tarde no Supremo Tribunal Federal.

Roberto Stuckert Filho/Ag. O Globo
"PARTE EM DINHEIRO, TÁ?
" O desembargador Carreira Alvim, do TRF no Rio (na foto, ao ser preso), descobriu que estava sendo investigado. Comprou linhas de telefone celular em nome de terceiros e conseguiu desmontar uma escuta ambiental em seu gabinete. "Por corrupção, eles não vão me pegar nunca", disse. Foi pego por corrupção ao orientar o genro sobre o pagamento de sentenças.

Quando entraram no escritório de Virgílio Medina durante a madrugada, os policiais encontraram mais indícios de crime. Ali, havia anotações sobre a liminar de 600.000 reais. Acharam mais. Antes, em conversas telefônicas monitoradas, os agentes desconfiaram que Virgílio estava negociando um adiamento num processo do delegado Edson de Oliveira, o mesmo que prendeu PC Farias, que foi condenado, em primeira instância, por corrupção em 1995. No escritório, havia anotações sobre o caso do delegado – que se encontra parado no STJ, nas mãos do ministro Medina. Na devassa noturna, os policiais ainda acharam dois lotes de documentos internos do STJ, que só podem ser obtidos por funcionários da corte. Numa declaração de imposto de renda, de 2005, constataram que os irmãos tinham um elo financeiro: Virgílio fez um suposto empréstimo de 440.000 reais ao ministro. Diz Antônio Carlos de Almeida Castro, advogado do ministro: "O dinheiro foi declarado à Receita Federal pelos dois. O ministro está tentando vender dois terrenos em Minas Gerais para pagar o irmão".

Aos 64 anos, membro do STJ desde 2001, Medina não apareceu para trabalhar nos últimos dias, abatido com as denúncias. Nos telefonemas do ministro, não consta uma única conversa com os empresários de bingo e, nos diálogos com seu irmão, não há menção à venda de decisões. Existe, portanto, a possibilidade de que Virgílio mercadejasse liminares à revelia do irmão. Mas o inquérito da Operação Hurricane traz outro caso constrangedor para o ministro. Os grampos sugerem que ele interferiu de forma irregular para que seu genro, o advogado mineiro Leonardo Bechara Stancioli, fosse aprovado num concurso público para juiz no Paraná. Nos diálogos gravados, o ministro diz que não pode "abrir o jogo" por telefone, afirma que consegue que a sustentação oral do concurso seja feita por "outra pessoa", informa que já conversou com os desembargadores e que a banca já fora devidamente informada sobre seu genro. "O esquema tá montado", diz ele. "A missão está cumprida, viu, Leo?". O genro de Medina foi aprovado em 17º lugar no dia 28 de novembro do ano passado. O resultado do concurso foi homologado duas semanas depois.

Roberto Stuckert Filho/Ag. O Globo
"CONFIE NO MEU TACO"
O desembargador Ernesto da Luz Pinto Dória, do TRT em Campinas (na foto, sendo preso), é o mais falastrão da quadrilha da toga. Atuando como lobista em outras esferas judiciais, é suspeito de embolsar mesada de 10 000 reais para ajudar donos de bingos a manter seus negócios em funcionamento. Também tentava subornar agentes públicos com relógios e viagens. "Confie no meu taco", dizia.

A Operação Hurricane foi uma das maiores da história policial, mobilizou 400 agentes e apreendeu 2 toneladas de documentos, em papel e meio magnético, além de capturar 19 armas, 51 veículos de luxo, 523 jóias, 160 relógios de marcas famosas e muito dinheiro em cheque e moeda sonante, no valor de 10 milhões de reais. Numa cena da operação, filmada pelos próprios policiais, aparece um agente derrubando uma parede falsa no escritório de um advogado do Rio e, atrás dela, surgem 4 milhões de reais em dinheiro vivo. Um policial exclama, entusiasmado: "Muita grana, moleque!". Mais do que pelo robusto resultado das apreensões, a investigação policial chama atenção pela ousadia da máfia dos bingos – formada por empresários, advogados e pela velha cúpula do jogo do bicho no Rio de Janeiro, como os veteranos Aniz Abrahão David, Antônio Petrus Kalil, o "Turcão", e Ailton Guimarães Jorge, o "Capitão Guimarães", todos presos. Além das suspeitas de que pode estar envolvido um ministro do STJ, a investigação descobriu que os criminosos chegaram a tentar aproximar-se até da presidente do Supremo Tribunal Federal, a ministra Ellen Gracie, que tomou uma decisão contrária aos interesses da máfia. Nas conversas monitoradas, fica claro que nada conseguiram.

Nos seus primeiros desdobramentos, as operações policiais estão concentradas nos Tribunais Regionais Federais, cortes que tratam da legalidade do jogo – assunto com uma história tão controvertida no país que já sofreu influência até de primeira-dama (veja o quadro). Em São Paulo, no âmbito da Operação Têmis, os policiais vasculharam o gabinete de três desembargadores na Avenida Paulista, em busca de indícios da venda de decisões para casas de bingo. No Rio de Janeiro, na Operação Hurricane, monitoraram os passos de dois desembargadores do TRF e conseguiram autorização para prender ambos. Um é o desembargador José Eduardo Carreira Alvim, cujo genro, Silvério Nery Júnior, foi flagrado negociando liminar do sogro por 1 milhão de reais com emissários de bingueiros. Além disso, o genro recebeu de presente da máfia um Mercedes-Benz de mais de 300.000 reais, foi fotografado embolsando dinheiro de bingueiro num shopping do Rio de Janeiro e grampeado em conversas com o sogro. Numa delas, Carreira Alvim explica que quer seu quinhão em moeda sonante. "Aquela idéia sua..., parte em dinheiro, tá?", diz ele ao seu genro, que responde: "Pode deixar, tá tudo na cabeça aqui, não se preocupa". Carreira Alvim, em decisão inteiramente descabelada e sem amparo legal, concedeu a tal liminar – logo cassada.

Eduardo Knapp/Folha Imagem
Joedson Alves/AE
Uma apreensão feita pelos agentes federais na Operação Anaconda, realizada em 2003 (à esq.), que acabou resultando na prisão do juiz Rocha Mattos (à dir.): era o começo do bote sobre a banda podre da Justiça, que vende sentenças e liminares

O outro desembargador preso é José Ricardo de Siqueira Regueira, o mais discreto e desconfiado dos investigados, mas que, apesar de todos os cuidados, já apareceu envolvido na venda de sentença para a máfia que adultera combustíveis. Para enfrentar a investigação de agora, Regueira montou até um sistema antiespionagem em seu gabinete, impedindo a instalação de escutas ambientais. Ainda assim, foi fotografado em animados almoços em restaurantes com o advogado Jaime Dias, que faz o papel de trem pagador da máfia dos bingos, e acabou flagrado na escuta instalada no gabinete do seu colega Carreira Alvim – um diálogo que mostrou indícios eloqüentes de que ambos atuavam em conjunto. Um terceiro desembargador também foi preso. É Ernesto da Luz Pinto Dória, que despacha no Tribunal Regional do Trabalho, em Campinas. Ele é o oposto de Regueira. Falastrão, foi flagrado em conversas prometendo milagres jurídicos e fazendo lobby junto a assessores de desembargadores, aos quais oferecia relógios e viagens. Num caso, oferece regalos a um assessor para que ele pressione o chefe, um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio, a tomar determinada decisão. Ao seu cliente, um advogado que começa a desconfiar dos seus serviços, o desembargador faz autopropaganda. "Não é para ter medo. Quando a Polícia Federal estourar o escritório de vocês, aí pode ter medo. Confie no meu taco. Não fui feito desembargador federal nas coxas", diz. Por esse lobby, que acabou não dando certo, o desembargador foi pilhado pela polícia cobrando 25 000 reais.

Apesar da amplitude do bote policial sobre a banda podre da Justiça, ações ainda mais ousadas estão por vir. VEJA apurou que está nas mãos do ministro do STF Joaquim Barbosa um pedido de prisão de ministros do STJ supostamente envolvidos com a venda de sentenças. O caso diz respeito ao advogado e lobista Roberto Bertholdo, preso em Curitiba no fim de 2005. Bertholdo foi pilhado numa escuta telefônica tramando a compra de uma liminar, por 600.000 reais, do ministro Vicente Leal, do STJ. Leal se aposentou recentemente sob suspeita num outro caso, o de venda de decisões judiciais a traficantes. No grampo, Bertholdo antecipa ao seu cliente as decisões que serão tomadas – e, mais tarde, tudo acontece do modo como prevê. Diz, por exemplo, que Vicente Leal dará uma decisão favorável ao cliente. E isso acontece. Depois diz que, quando a decisão fosse analisada pelos demais magistrados, o ministro Paulo Medina entraria em ação, retardando o processo. E isso também acontece. As investigações colheram a suspeita de que Bertholdo tinha ligações com outro advogado, Octávio Fischer, que vem a ser filho de Felix Fischer, ministro do STJ, o mesmo que, na semana passada, proibiu a Operação Têmis de prender magistrados em São Paulo.

Carlos Magno/Ag. O Globo
DISCRETO E SILENCIOSO
O desembargador Ricardo Regueira, do TRF no Rio, era íntimo dos compradores de sentenças. Impediu as escutas em seu gabinete ao instalar um sistema de antiespionagem. Gravado no gabinete de um colega, Regueira aparece como cúmplice nas ações para beneficiar a máfia da jogatina


Nada é mais fulminante para a credibilidade do Judiciário do que a suspeita sobre a legitimidade de suas decisões – que, num estado de direito democrático, são soberanas e devem ser cumpridas por todos. Mas é preciso compreender que, apesar da vastidão das operações policiais, a Justiça brasileira é um poder íntegro e correto. É a sua banda podre e corrupta que está sendo exposta à luz do dia – e isso é altamente positivo. Tanto que as operações policiais aconteceram com o apoio decisivo da própria Justiça. No caso da Operação Hurricane, por exemplo, tudo começou num incidente em Niterói no qual uma juíza autorizou a polícia a usar escutas telefônicas. Agora, o caso é conduzido pelo ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, que tem trabalhado em sintonia com a Polícia Federal. "As operações cortam o Judiciário na própria carne", afirma o juiz Rodrigo Collaço, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). "Mas considerar que o Judiciário, que tem 13.000 juízes, está podre por causa de meia dúzia de magistrados não condiz com a verdade."

Examinando-se o quadro geral da Justiça, não existe nenhum sinal de que a corrupção esteja se expandindo de modo alarmante entre os magistrados. As operações da semana passada podem dar essa impressão, mas elas devem ser atribuídas muito mais a um salto de qualidade no trabalho policial. Na Operação Hurricane, por exemplo, os agentes federais usaram algumas das técnicas mais avançadas de investigação para cercar a quadrilha. O aparato inclui a instalação de escutas ambientais, filmagens e o monitoramento de investigados em tempo real, além de discretas incursões noturnas em escritórios, com a devida autorização judicial, sem deixar pistas. O aspecto que deve chamar a atenção das autoridades do Judiciário é que tudo começou no âmbito policial, um sinal inequívoco de que a própria Justiça não dispõe de mecanismos eficazes para detectar a corrupção entre os magistrados. Nos quinze anos em que trabalhou em tribunais em São Paulo, Luiz Flávio Gomes, juiz aposentado e ex-professor da Universidade de São Paulo (USP), diz que jamais viu uma investigação interna punir um juiz. "As corregedorias funcionam precariamente, sem estrutura, e são dominadas pelo corporativismo. Investigações contra escreventes costumam ir a fundo, mas as que envolvem juízes são sigilosas e quase sempre são arquivadas", afirma. O próximo passo será fazer com que a Justiça comece a trabalhar no sentido de se autofiscalizar com eficiência – para o bem dos magistrados, cuja maioria é formada por profissionais honestos, e para o bem do Brasil, que precisa acreditar na Justiça que tem.

Justo para crescer

Ao combater com rigor a corrupção no Judiciário,
o Brasil estará dando um passo rumo ao crescimento


Ronaldo França

Nano Cartagena/AP
Refinaria da Petrobras na Bolívia: subsidiária na Holanda para garantir o investimento



Ao provar que previsibilidade, estabilidade e respeito a contratos e regras são essenciais para a redução dos custos das transações, o economista inglês Ronald Harry Coase ganhou o Prêmio Nobel, em 1991. Ele demonstrou que países com sistemas judiciais deficientes acabam com a capacidade competitiva das empresas. Chamada a atuar na resolução de conflitos, cabe à Justiça a tarefa de estabelecer o clima de confiança necessário para atrair investimentos. O Brasil, diante do crescimento pífio que vem apresentando e da notória superioridade de seus competidores globais, tem como desafio livrar-se do peso de um Judiciário desacreditado. Sua ineficiência e sua corrupção acabam por inibir o desenvolvimento econômico do país. As lições de Coase devem servir como uma bússola. A limpeza do Judiciário é o norte geográfico em que o país deve mirar.

O nível de infiltração que a máfia do jogo alcançou nos gabinetes da Justiça, país afora, tem como efeito direto a imprevisibilidade das decisões. Quando o que decide uma sentença é a propina, as leis têm sua credibilidade ferida de morte e a incerteza torna mais difícil a vida dos investidores. É o caso dos investimentos que a Petrobras tem na complicada Bolívia. Quando decidiu fazê-los, em 1995, tratou de se defender dos riscos. Investiu cada centavo a partir de sua subsidiária na Holanda. Desde 1994, Bolívia e Holanda têm um tratado bilateral de investimento que oferece garantias extras aos investidores. Isso antes de surgir o desvairado Evo Morales, que retomou, na marra, as refinarias brasileiras. Agora, o caso deverá correr na Justiça de Nova York, onde as garantias da empresa aumentam porque têm lastro não somente em leis locais, mas em um acordo firmado entre duas nações.

Para o economista americano Douglass North, os países são mais bem-sucedidos quando têm regras claras na economia, Justiça eficiente e instituições políticas sólidas. Nesse ponto é preciso observar a enorme contribuição que a desorganização do Judiciário brasileiro oferece aos que querem manobrar as leis. Cria-se incerteza e abre-se o terreno em que brota a corrupção. Entre os poderes, o Judiciário é o encarregado de solucionar conflitos. Portanto, de manter a paz. E é disso que os empresários precisam para fazer o país crescer. Isso e menos impostos. Mais nada.

Hora da faxina

Na Itália e nos Estados Unidos, dois exemplos
de combate à corrupção no poder público

Paul J.Richards/AFP

Rudolph Giuliani, ex-prefeito de Nova York: a demissão dos maus policiais foi o ponto de partida para o combate ao crime


Nos últimos quinze anos, o mundo assistiu a duas ações espetaculares para extirpar a corrupção do poder público. A primeira delas foi a Operação Mãos Limpas, deflagrada na cidade italiana de Milão, a bela e industrializada capital da Lombardia. Em 1992, um episódio aparentemente banal – a denúncia de um empresário de que um asilo do governo lhe cobrava propina pelos serviços que prestava – foi o estopim da faxina que em um ano colocou na cadeia 300 figuras graúdas, entre deputados, senadores e funcionários públicos de altos escalões. Além disso, nove ministros renunciaram ao cargo. "Vivemos o nosso 14 de julho de 1789", comemorou na época o escritor italiano Umberto Eco. Na Operação Mãos Limpas, comprovou-se aquilo que os italianos desconfiavam: praticamente todas as concessões para obras públicas envolviam propinas fornecidas por empresários para financiar os partidos políticos. Durante a operação, a população lavou a alma. A Itália já havia visto escândalos maiores, envolvendo mais dinheiro e gente mais importante, como a quebra do Banco Ambrosiano, nos anos 80. Mas as investigações nunca davam em nada, obstruídas à sorrelfa pelos políticos.

A segunda grande campanha para varrer a corrupção em tempos recentes foi feita em Nova York. Em 1994, o então prefeito da cidade, Rudolph Giuliani, decidiu jogar duro contra o crime adotando a política batizada de tolerância zero. A estratégia de Giuliani tinhas duas diretrizes básicas – não tolerar nenhum delito, por menor que fosse, e manter todos os criminosos presos. Mas havia uma pedra em seu caminho: os índices altos – para os padrões americanos – de corrupção na polícia de Nova York. Para tornar viável sua tolerância zero, primeiro Giuliani determinou ao chefe de polícia, William Bratton, que limpasse seus quadros de membros corruptos. Em 1995, 1.222 policiais passaram por uma espécie de teste de integridade. Primeiro, investigavam-se a fundo suspeitas relacionadas a eles. Depois, acompanhavam-se os policiais em ação para ver como agiam ao encontrar grandes somas em dinheiro ou drogas nas mãos de criminosos. Naquele ano, onze policiais foram demitidos. Em 1996, nova operação malha fina com 1.320 policiais resultou no afastamento de 24 deles. Deflagrada a política de tolerância zero, a criminalidade despencou. Nova York, que ocupava o primeiro lugar entre as 150 cidades mais violentas dos Estados Unidos, pulou para o último lugar em 1996. Para isso, o primeiro passo foi combater a corrupção entranhada no poder público.



Condene, depois julgue


A Rainha de Copas, personagem de Alice no País das Maravilhas, manda cortar a cabeça de quem a contraria. No julgamento de Alice, no último capítulo do clássico de Lewis Carroll, ela pede uma condenação antes mesmo que as provas sejam analisadas pelo júri. "A sentença primeiro... Depois o veredicto", diz ela. Felizmente, no Brasil, a Constituição assegura o amplo direito de defesa e o devido processo legal. Isso significa, por exemplo, que um juiz só pode condenar alguém depois de o réu se defender formalmente. E que essa condenação só é válida depois de anexada ao processo. Qualquer coisa fora disso é ilegal.

Na noite da segunda-feira 16 de abril, o jornalista Kennedy Alencar, da Folha de S.Paulo, protagonizou um episódio que remete à Rainha de Copas. Ele divulgou, em sua coluna on-line, a condenação da Editora Abril e do colunista Diogo Mainardi em ação de indenização movida por Franklin Martins, hoje ministro da Secretaria de Comunicação Social. Na coluna, acertou na condenação e até no valor: 30.000 reais. A notícia estava correta, mas havia dois problemas nela:

• Quando Alencar a divulgou, no dia 16, a defesa da Editora Abril e do colunista Diogo Mainardi não havia sido anexada ao processo. Isso só ocorreu no dia 17.

• A sentença, do juiz Sergio Wajzenberg, da 2ª Vara Cível do Rio de Janeiro, só foi assinada e anexada ao processo no dia 17 – um dia depois, portanto, de Kennedy Alencar ter divulgado a notícia.

O jornalista da Folha, assim, antecipou os termos de uma sentença que ainda não existia no dia 16. Como o jornalista conseguiu obter a notícia da condenação, com o seu valor preciso? Um crente aventaria a hipótese de que Kennedy é médium. Já um cético levantaria a suspeita de que alguém lhe soprou o teor da sentença antes mesmo de ela ser assinada – e antes de a defesa ter sido encaminhada ao juiz. Nesse caso, o magistrado teria prejulgado o processo. Os advogados da Editora Abril e de Mainardi tentaram obter, na manhã do dia 17, cópia de tal decisão no cartório da 2ª Vara Cível do Rio de Janeiro. Foram informados pelo escrivão Valmir Ascheroff de Siqueira de que a decisão não existia. Nem poderia existir, segundo ele, pois a defesa dos réus acabara de ser anexada ao processo. Pouco tempo depois, os mesmos advogados requisitaram cópia de todo o processo, a fim de atestar a inexistência da sentença noticiada pelo jornalista. O escrivão, então, disse que uma decisão acabara de surgir (assim, do nada), mas que ninguém poderia ver o processo. Juntamente com o presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, os advogados da Abril protestaram ao desembargador Luiz Zveiter, presidente da Corregedoria de Justiça, que determinou o acesso imediato ao processo. Constatou-se que uma decisão fora anexada com data de 17 de abril, um dia depois de Alencar tê-la noticiado.

Kennedy Alencar divulgou a versão de que uma fonte lhe teria informado que o juiz Wajzenberg, por engano, mandara divulgar a sentença na internet, no dia 16, num processo paralelo. Ao receber a informação, o jornalista teria digitado o número do processo paralelo no site do tribunal e capturado os termos da sentença antes de o juiz perceber o equívoco cometido e retirá-la do ar. O agilíssimo Kennedy afirmou: "Basta ligar para 21-3133-2000 e falar com a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Rio". Ele acrescentou que a sentença era datada de 3 de abril. Tudo muito curioso. Como poderia Wajzenberg ter sentenciado em 3 de abril se, no texto, ele aborda um documento protocolado pela defesa em 10 de abril? Como poderia um juiz não respeitar o dever de examinar a defesa dos réus, anexada ao processo apenas no dia 17? Como poderia um juiz, sozinho, ter determinado a divulgação da decisão no site do tribunal, no dia 16, sem ela ter antes passado pelo cartório, como obrigam os ritos formais?

VEJA ligou para o número do Tribunal de Justiça sugerido pelo jornalista e perguntou se a sentença de fato esteve disponível no site do tribunal por alguns momentos no dia 16. A resposta da assessora de imprensa Simone Araújo: "Não vamos responder a essa pergunta". Tudo isso cria uma situação inusitada. Se Kennedy Alencar falou a verdade, o juiz Wajzenberg prejulgou o caso contra a Editora Abril e contra o colunista Diogo Mainardi. Se mentiu... A Editora Abril já solicitou à Corregedoria de Justiça a apuração do caso. Kennedy Alencar é um jornalista fiel. Ele foi porta-voz de Lula, entre abril de 1994 e julho de 1995. Amigo de Franklin Martins, Kennedy Alencar demonstra uma atração fatal pelo colunista Diogo Mainardi. Vasculha obsessivamente sites dos tribunais atrás de decisões sobre o colunista de VEJA. Que vocação!

Exclusivo on-line
Podcast Radar on-line: Alexandre de Moraes, do Conselho Nacional de Justiça, fala sobre a corrupção e lentidão no Judiciário




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