Marco Aurélio Nogueira
O caos em que se transformaram os aeroportos brasileiros nos últimos meses, a recente greve dos controladores de tráfego aéreo e o modo como as autoridades civis e militares a enfrentaram fizeram com que muitos analistas trouxessem de volta ao debate a questão da segurança nacional.
Nada mais justo. O espaço aéreo é a principal via física para que povos e pessoas - e, portanto, idéias, interesses, negócios - façam contato e interajam. Tornou-se vital saber quem controla e organiza o fluxo crescente de aviões e viagens, como é feito esse controle e em que bases de confiança e sustentabilidade ele está organizado. Além do mais, a greve dos controladores foi uma greve de sargentos, de pessoal militar, fato que incomoda as Forças Armadas e pode sugerir a imagem de um Estado desguarnecido.
Mas como se deve analisar a segurança nacional num contexto que a cada dia assiste à crescente diluição das fronteiras nacionais, que não se cansa de exibir a precariedade dos mecanismos de organização e tomada de decisões, que reduz gravemente as possibilidades de ação autônoma de governos, chefes e dirigentes?
O problema não pode ser analisado como se estivesse inserido num quadro de Estados territorialmente fixados, bem-sucedidos na reivindicação do monopólio da força legítima e vinculados a sociedades de baixa complexidade. A segurança deixou de ser um problema do Estado em sentido estrito, e muito menos é um problema estritamente militar, ainda que continue a ser uma questão de Estado. Ultrapassou as fronteiras nacionais, por mais que continue a encontrar nas experiências nacionais concretas boa parte de suas chances de êxito e de suas determinações. Depende sempre mais das sociedades como um todo, do conjunto dos cidadãos e de cada cidadão singular. Não pode ser concebida fora do Estado, sem o Estado ou exclusivamente pelo Estado.
Já não vivemos numa “era do espaço”, ou seja, daquilo que historicamente serviu de referência para que se falasse em proteção e segurança (mas também, como se sabe, em exclusão e fanatismos xenófobos). As sociedades simplesmente não podem mais se isolar do mundo ou se fechar ao mundo. O poder dos fluxos conta mais que os fluxos do poder, como disse certa vez o sociólogo espanhol Manuel Castells. Múltiplos poderes internos e externos proclamam sua força por cima de Estados e governos, sem dispor de legitimidade democrática para tanto. Por extensão, as instituições que se dedicam a defender e governar as comunidades passam a ter mais dificuldades para funcionar. A “crise da representação política” e o “sofrimento organizacional”, típico do nosso tempo, refletem isto.
Não pode haver segurança nacional sem segurança global e sem segurança social, ou seja, sem uma situação de maior igualdade e justiça no mundo e no interior de cada sociedade particular. E é precisamente porque nada disso é simples de se alcançar que se passou a viver num estado permanente de medo e insegurança, no qual há uma verdadeira obsessão pela segurança.
A experiência moderna caracteriza-se pela constante revisão de seus próprios fundamentos, pela irrupção incessante de novas formas de vida, organização e relacionamento. Quanto mais ela avança como individualização - quer dizer, como liberação dos indivíduos perante os grupos -, mais se assiste a uma espécie de corrosão da capacidade institucional de proteger e referenciar as pessoas e as comunidades. Querendo ou não, essa corrosão atinge todas as instituições. Seria estranho, portanto, se continuássemos a falar de “segurança nacional” e de defesa do Estado sem ao menos considerar os novos dados da vida, seja no plano internacional (onde prepondera uma globalização desigual e fora de controle), seja no plano da vida social, onde injustiça e exclusão caminham de mãos dadas com luxo, consumo e tecnologia, alimentando um mecanismo que gira em alta velocidade e atropela regras, planos e limites territoriais.
A discussão precisa incluir as Forças Armadas. Não para reiterá-las como “sombra” do poder civil, como um sistema a que se deveria temer e jamais molestar, mas para analisá-las serenamente, sine ira et studio. Que papel e status devem ter no mundo atual? Quanto investir em equipamento militar para proteger países que não têm “inimigos externos” claramente posicionados, cujas fronteiras nacionais são porosas e cuja soberania só pode ser exercida de modo compartilhado? Sem definições como estas, arriscamo-nos a ver as Forças Armadas convertidas em polícia da sociedade, fato que deturparia a função precípua dos exércitos, bloquearia a consideração política da segurança pública e militarizaria definitivamente o combate à violência e à criminalidade. Em vez de paz e segurança, teríamos ordem armada e restrições à liberdade, e isso num contexto estruturado por indivíduos sempre mais “soltos” e mais desejosos de movimentação. Não funcionaria.
No caso brasileiro, a questão não é “desmilitarizar” ou não o controle do tráfego aéreo. Antes de tudo porque o motim dos sargentos - e, depois, a desobediência dos oficiais que os comandavam - mostrou que também as Forças Armadas se ressentem de um déficit de autoridade e não podem mais reivindicar a posse da “melhor solução” para a questão da ordem e da obediência. Em segundo lugar, porque o governo e as empresas aéreas não têm uma política clara para o setor e nem se mostram à altura da sua complexidade. Em terceiro lugar, porque o controle aéreo, além de surpreendentemente “sindicalizado”, está sufocado pelo atraso tecnológico e pelo crescimento exponencial do número de vôos e passageiros. O caos aéreo não desaparecerá simplesmente se os controladores forem enquadrados e ganharem novos equipamentos, ainda que tudo isso possa ser fundamental.
Não são somente os controladores de vôo que estão fora de controle.
Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política da Unesp e autor, entre outros, dos livros Em defesa da política (Senac, 2001) e Um Estado para a sociedade civil (Cortez, 2004). E-mail: m.a.nogueira@globo.com