O legado de Boris Ieltsin inclui o fim de um
regime atroz e a libertação de povos e países
Denise Dweck
AP | Czarek Sokolowski/AP |
Ieltsin em dois momentos: funeral na catedral e no confronto com os comunistas, em 1991 |
Uma nova abordagem para analisar a história da Rússia sobressaiu agora. Leva em conta a participação popular nos funerais de um manda-chuva. Durante sete décadas de comunismo, a espontaneidade era zero. A presença era compulsória para os funcionários do partido. Também nesse aspecto, o país onde Boris Ieltsin foi sepultado na semana passada é uma Rússia diferente daquela que ele refundou há quase dezesseis anos. Mais de 20.000 pessoas compareceram voluntariamente à monumental Catedral de Cristo Salvador, às margens do Rio Moscou, onde ele foi velado com honras de estado. Um repórter americano notou que boa parte da fila era de moscovitas jovens demais para lembrar do mundo antes de Ieltsin. É boa notícia: mesmo os russos que não tiveram experiência direta com o comunismo têm conhecimento da realidade brutal dos tempos soviéticos.
Esse novo mundo, melhor que o anterior em todos os aspectos, deve muito a Boris Ieltsin. A foto do presidente russo sobre um tanque em 1991, enfrentando a tentativa de golpe comunista, é um ícone de nosso tempo. Apesar disso, nos últimos anos, ele era lembrado na Rússia mais pelos aspectos folclóricos de seu comportamento errático e pelas bebedeiras homéricas. Uma explicação para a imagem negativa é a campanha de difamação montada por seu sucessor, Vladimir Putin. Com isso, ele tenta vender a idéia de que personifica a "ordem" em oposição ao "caos" do governo anterior. A segunda explicação é que a transição para a economia de mercado foi realmente conturbada e exauriu o país e seus habitantes. Nem tudo pode ser colocado na conta de Ieltsin. A miséria dos primeiros anos de democracia foi a herança maldita do comunismo. Quando ele assumiu, a economia soviética tinha parado de funcionar e o país estava falido. Em 1992, o PIB russo era um quarto do brasileiro. Atualmente é similar.
As conquistas de Ieltsin podem agora ser vistas não sob o prisma dos negócios de estado, mas medidas pelo perigo real então existente de um colapso da sociedade e da economia russas. As reformas de Ieltsin, ainda que confusas, salvaram a Rússia. É bom lembrar contra o que ele se insurgiu. Na URSS, de 1917 a 1953, ano da morte de Stalin, os expurgos, a fome, as deportações em massa e o trabalho forçado no gulag mataram 20 milhões de pessoas. Só a grande fome de 1921-1922, desatada em grande parte pelo confisco de alimentos dos camponeses, ceifou mais de 5 milhões de vidas. Ieltsin era um sobrevivente da experiência soviética. No período da coletivização de Stalin, seu avô, um camponês, perdeu sua terra e foi condenado a trabalhos forçados. Seu pai passou três anos no gulag. Ieltsin cresceu numa espécie de alojamento com outras vinte famílias, cada uma num quarto e com um só banheiro. Quando Gorbachev lançou a perestroika e a glasnost, nos anos 80, Ieltsin, então chefe do Partido Comunista em Moscou, aderiu de corpo e alma. Mas não tinha paciência para as reformas graduais do último presidente soviético. Ieltsin acreditava no apoio popular como única base legítima para instituições políticas e duvidava que o sistema soviético pudesse sobreviver à abertura. Caiu em desgraça e foi demitido. Ressurgiu quatro anos depois, para espanto geral, como o primeiro presidente eleito da história russa.
Ainda se estuda como foi possível o surgimento de reformistas dentro do sistema totalitário. "A elite moscovita tinha acesso a informações sobre a realidade no exterior e queria reformas", disse a VEJA o americano Theodore Hopf, da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos. Para Hopf, Ieltsin tinha o instinto de mudança, mas estava despreparado para realizar as reformas ao assumir o poder. Stephen Sestanovich, embaixador americano em Moscou entre 1997 e 2001, tem uma explicação para a facilidade com que o comunismo foi varrido do mapa. "O sistema estava tão apodrecido e fraco que a elite pôde seguir idéias radicais sem medo de ser punida." O legado de Ieltsin inclui o enterro do comunismo e a libertação dos povos das outras catorze repúblicas soviéticas e da Europa Oriental. Não é pouca coisa.