Bolívar Moura Rocha
Serão recorrentes as crises em nossa infra-estrutura, enquanto não for conferida qualidade a seus planejamentos de médio e longo prazos. No debate público acerca do impacto do ambiente regulatório sobre investimentos no setor é sempre apontada, corretamente, a importância de agências reguladoras independentes. Atenção bem menor tem merecido a relevância do processo de formulação das diretrizes que as agências devem seguir. Isso seria compreensível em países em que o planejamento está solidamente assentado - não é, claramente, o caso do Brasil.
Já em 2003 o Conselho Nacional de Aviação Civil (Conac) reconhecia a existência de crise nos transportes aéreos, como registram as Diretrizes da Política de Aviação Civil: “O transporte aéreo atravessa crise cujas proporções exigem dos governos e da sociedade a atenção necessária para preservar serviços essenciais e o interesse público envolvido.” O Conac determinou, então, a expansão do Programa de Formação de Recursos Humanos para “ampliar a capacitação profissional na área da aviação civil” e a “elaboração de Plano Aeroviário Nacional, promovendo a ordenação dos investimentos”. O conselho não voltou a se reunir e as determinações se perderam. O apagão anterior, do setor elétrico, constituiu outra ilustração notória da desatenção ao planejamento. Criado em 1997, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que tem entre suas competências a de “sugerir a adoção de medidas necessárias para garantir o atendimento à demanda nacional de energia elétrica”, só se reuniu pela primeira vez após a eclosão da crise, em 2001.
O exame de outras áreas vitais de infra-estrutura não permite otimismo. O Conselho Nacional de Integração das Políticas de Transportes (Conit) é responsável por “propor medidas que propiciem a integração dos transportes aéreo, aquaviário e terrestre” e por “harmonizar as políticas nacionais de transporte com as políticas de transporte dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”. Criado por lei em 2001, o Conit até hoje não foi instaurado. Na área de saneamento básico, a legislação que entrou em vigor em janeiro encarregou genericamente a União, sob a coordenação do Ministério das Cidades, de formular a Política Nacional de Saneamento, mas não instituiu órgão formulador ou procedimentos claros e deixou em aberto a questão, nevrálgica, relativa à definição da titularidade dos serviços. Ainda que a competência legal nessa área seja de Estados e municípios, não haverá progresso sólido sem a liderança do governo federal, cujo empenho no assunto é tolhido por carências institucionais.
Dois fenômenos arraigados em nossa prática política concorrem para a precariedade da formulação de políticas para infra-estrutura. Primeiro, o loteamento de cargos do Poder Executivo, notadamente nos Ministérios responsáveis por infra-estrutura, que movimentam recursos elevados. Trata-se de processo pouco compatível com a excelência na formulação e na gestão. Segundo, a forte resistência de governantes, em geral, a chamar ao processo decisório atores, externos ao governo, capazes de aportar qualidade à tarefa de formulação. Essa resistência resulta do desejo de reter poder e talvez explique por que o Conselho Nacional de Política Energética tem já há alguns anos dois assentos vagos - precisamente aqueles reservados a cidadãos com notória especialização em energia.
A importância do problema exige agenda vigorosa, que deveria conter pelo menos cinco pilares. Em primeiro lugar, um núcleo no Poder Executivo deveria fiscalizar, de forma sistemática, o trabalho de formulação: se não é possível abolir o loteamento dos cargos da administração pública, é indispensável atenuar os efeitos nefastos. A Câmara de Políticas de Infra-Estrutura poderia exercer essa função. Segundo, é preciso exigir, em lei, rigor do trabalho dos órgãos responsáveis pela formulação: regularidade dos trabalhos e prestação de contas por meio de relatórios de atividades. Inventário dos marcos legais permitirá identificar inadequações e sugerir ajustes, que poderiam valer-se do projeto de Lei Geral das Agências, ora em tramitação no Congresso. Em terceiro lugar, é preciso assegurar o concurso, enquanto instâncias assessoras, daquelas instituições da administração que têm vocação para a reflexão de longo prazo. É o caso do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e, em menor medida, da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda e do BNDES. Em quarto lugar, é preciso adotar mecanismos que viabilizem o controle externo. A divulgação de relatórios de atividades pela internet tornará possível o controle por entidades que acompanham sistematicamente temas de infra-estrutura, como órgãos de defesa dos consumidores e a Confederação Nacional da Indústria. Por fim, e a propósito de controle externo, as comissões permanentes de ambas as Casas do Congresso precisam funcionar como fóruns de discussão e cobrança. Podem usar, para tanto, a assessoria técnica de bom nível que há no Parlamento. Essa última sugestão pode soar ingênua, mas a importância da matéria não permite descartar sequer as utopias.
A chaga do planejamento precário de nossa infra-estrutura não foi inaugurada pelo atual governo, que tem ainda tempo para legar mudança duradoura nessa matéria. Há indicações de disposição nesse sentido, como a anunciada Secretaria de Ações de Longo Prazo e o Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação. Esse embrião deve ser desenvolvido com determinação, de forma a conferir excelência e permanência ao processo de planejamento - em uma palavra, institucionalizá-lo. Sem o que o desenvolvimento sustentável restará inviável e seremos, periodicamente, vítimas de apagões.
Bolívar Moura Rocha é sócio de Levy & Salomão Advogados