Carlos Alberto Di Franco
Ao longo de suas 2.878 páginas distribuídas em 12 volumes recheados de grampos, relatórios e documentos apreendidos, a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público (MP) Federal descrevem uma organização criminosa claramente associada a setores do Judiciário e dedicada a pagar propinas em troca de decisões judiciais favoráveis aos interesses de proprietários de locadoras de máquinas de videopôquer, caça-níqueis e casas de bingo. A Operação Hurricane (Furacão) prendeu 25 pessoas, entre juízes, policiais, advogados e bicheiros.
O relato da investigação, obtido pelo jornal O Estado de S. Paulo, mostra que a PF conseguiu mapear uma rede de negociações entre intermediários de bicheiros e bingueiros e o advogado Virgílio Medina, irmão do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Paulo Medina, além de outras personalidades do Judiciário.
Conforme os grampos telefônicos, Virgílio chegou a pedir R$ 1 milhão - depois reduzido para R$ 600 mil - para obter de seu irmão uma decisão favorável à empresa Betec Games, dona de caça-níqueis apreendidos por decisão judicial no Rio. No inquérito, a PF aponta que Virgílio Medina, preso pela PF, atuou “com o único propósito de fazer a intermediação e a negociação da decisão a ser proferida por seu irmão”. O ministro Paulo Medina concedeu decisão favorável à empresa.
Por conta dos indícios de envolvimento de Paulo Medina no caso, o inquérito passou a ser conduzido no Supremo Tribunal Federal (STF), encarregado de investigar ministros de tribunais superiores. Outro braço do Judiciário apontado na articulação com a quadrilha envolve o desembargador do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região, José Eduardo Carreira Alvim, também preso na operação. Alvim concedeu liminares favoráveis às empresas de bingo. A PF afirma que o próprio magistrado, “ciente da teratologia (monstruosidade) dessas decisões”, cita nos grampos que, “se o recurso for para Paulo Medina”, no STJ, “terá êxito, caso contrário, não”. A matéria de Sônia Filgueiras, repórter da sucursal de Brasília do jornal O Estado de S. Paulo, é a ponta do iceberg de mais um escândalo que agride a cidadania.
Os brasileiros assistem, indignados, a um novo capítulo da nauseante novela da corrupção que corrói o País. A escalada da criminalidade é o resultado direto do pragmatismo aético e da impunidade que, progressivamente, foram tomando conta de amplos setores do poder.
Alguns, certamente, manifestarão irritação com os excessos do suposto denuncismo da mídia e com o vedetismo do MP e da PF criticando “o poder de destruição” dessas instituições. Dirão, em defesa dos acusados, que jornalistas, promotores e policiais partem do princípio de que todos os cidadãos são culpados, até que provem sua inocência. Reconheço a pertinência dessa preocupação, embora constate uma excessiva indulgência com os acusados.
Na verdade, em nome do amplo direito de defesa, importante e indispensável, a efetivação da Justiça pode acabar se transformando numa arma dos poderosos e numa sistemática frustração dos mais desprotegidos. Aplicam-se aos desvalidos os rigores da lei e se concedem aos criminosos do colarinho-branco as vantagens dos infinitos recursos que o Direito reserva aos que podem pagar uma boa defesa. A crise do Judiciário tem transformado a imprensa numa instância prática de realização da Justiça. O cidadão, descrente da eficácia do caminho judicial, procura o repórter. Vivemos uma profunda distorção, uma superposição de papéis. A crise, no entanto, não se resolve com atitudes corporativas. É preciso rediscutir um novo conceito de espaço público, que permita uma convivência civilizada entre o Poder Judiciário e o mundo da informação.
Os meios de comunicação, independentemente de suas mazelas e equívocos, têm travado uma saudável discussão a respeito dos seus conflitos éticos. Não vejo, no entanto, o mesmo debate na área do Judiciário. O formalismo jurídico, marcado pela pura e simples aplicação das leis, não tem conseguido enfrentar problemas que ultrapassam as balizas fixadas pelo positivismo que está por baixo de inúmeras decisões. Será que o Judiciário, premido por uma estrutura obsoleta e morosa, está em condições de responder adequadamente ao desafio dos crimes ecológicos, da delinqüência infanto-juvenil, dos escândalos políticos, do financiamento ilegal de partidos, do narcotráfico, etc.? Penso que não. Nós, profissionais da imprensa, estamos tentando fazer a nossa parte. Esperemos que o Judiciário faça a sua. Só então, sem corporativismo e arrogância, romperemos o conflito que tem marcado as relações entre duas instituições básicas para o processo democrático: imprensa e Judiciário.
O combate à criminalidade exige rigor. O Judiciário, sem dúvida integrado por inúmeros homens de bem, deve atuar com toda a sua energia - sem receio de ser chamado de “vingador” por uns e outros, que sempre defenderam a ideologia da leniência pública em relação ao crime -, porque, no fundo, o que está em jogo é o valor mais alto da ordem pública no Estado Democrático de Direito, que não pode ser destruída por bandidos e seus conspícuos defensores.
A imprensa está cumprindo o seu papel: noticiar os fatos e registrar a legítima indignação de uma sociedade descrente e frustrada. A opinião pública, com razão, dá mostras de crescente irritação com o descompasso entre o vigor de certas declarações e a apatia manifestada nas ações concretas de algumas autoridades. Direito de defesa, sim; impunidade, não.