Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 21, 2007

Roberto Pompeu de Toledo


Joaquim José,
um brasileiro

As razões que levaram Tiradentes,
homenageado a cada 21 de abril,
a virar herói supremo da nação

Nunca ficou clara, e provavelmente nunca ficará, a exata importância do papel desempenhado por Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, na Inconfidência Mineira. Nunca ficou claro se era um revolucionário consistente ou um bobo boquirroto, que nos bordéis oferecia às prostitutas lugares de destaque na república que prometia construir. No entanto, esse personagem elusivo, de biografia que nos chegou truncada, e do qual não se conhecem nem os traços fisionômicos, ajustou-se muito bem ao papel de herói supremo da nacionalidade de que o incumbiram tanto os decretos oficiais quanto o gosto popular, tanto os dirigentes de turno quanto os opositores. A nenhum outro foi reservada a honra de um feriado nacional dedicado à sua pessoa.

Tiradentes foi elevado a herói oficial pela República. No período imperial, sua figura permaneceu, se não esquecida, pelo menos obscurecida, pela boa e forte razão de ter sido adepto do regime republicano e, ainda por cima, de o movimento a que pertenceu ter pretendido atentar contra uma dinastia cujos herdeiros continuavam, apesar da independência, no comando do país. Proclamada a República, já o 21 de abril seguinte, o de 1890, foi feriado. Nestes 117 anos que se seguiram, pairando por cima dos diversos golpes e revoluções, ditaduras, períodos democráticos, governos mais à direita e mais à esquerda, o 21 de abril, dia do enforcamento de Tiradentes, em 1792, nunca deixou de ser feriado.

A primeira razão para seu triunfo póstumo tem base no próprio caráter esquivo do personagem. Como não se sabe direito quem ele foi, virou figura fácil de ser puxada para este ou aquele lado. O regime militar declarou-o "Patrono Cívico da Nação Brasileira" por decreto do marechal Castello Branco de dezembro de 1965. Em 1967, o Teatro de Arena, de São Paulo, um templo da esquerda, montou a peça Arena Conta Tiradentes, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. Se o Tiradentes de Castello Branco era um herói para personificar os valores que o regime militar pretendia representar, o do Arena era um contestador desses mesmos valores.

A segunda razão, conforme a lúcida argumentação do historiador José Murilo de Carvalho, é o fato de a frustrada tentativa de insurreição de que Tiradentes acabou o símbolo ter ocorrido em Minas Gerais, com desdobramentos no Rio de Janeiro, onde ele foi preso e enforcado. Não faltaram insurreições de coloração republicana, tanto no período colonial quanto no imperial. As revoluções pernambucanas de 1817 e 1824 são duas delas, outra é a Farroupilha, do Rio Grande do Sul. Os cabeças do movimento que proclamou a República poderiam ter escolhido, como heróis da nação, tanto o frei Caneca dos levantes pernambucanos como o Bento Gonçalves do movimento gaúcho. José Murilo de Carvalho sugere no entanto que um e outro acabaram descredenciados por ter atuado em regiões consideradas, àquela altura, secundárias em relação ao eixo político do país. Tiradentes, ao contrário, "era o herói de uma área que, a partir da metade do século XIX, já podia ser considerada o centro político do país – Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo".

A terceira e mais interessante razão da glorificação de Tiradentes é o apelo popular da fusão, em sua pessoa, de herói nacional e ícone religioso. Os artistas inventaram para ele um rosto inspirado naquele inventado para Jesus Cristo. Como Jesus Cristo, ele é o protagonista de uma paixão. Sua caminhada, na manhã daquele 21 de abril – um sábado, como neste ano –, da cela que ocupava na Cadeia Velha, situada onde atualmente fica o Palácio Tiradentes (antiga sede da Câmara dos Deputados, hoje da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro), até a forca, no lugar então conhecido como Campo de São Domingos, ecoa o trajeto do Calvário. A esses fatores exteriores soma-se que, nos três anos em que permaneceu preso, marcados pelas privações, pelos interrogatórios, pela expectativa da morte e pela assistência dos padres, Tiradentes deixou-se tomar pela religiosidade. Ao subir ao cadafalso, beijou os pés do carrasco. Depois rezou o credo. Era um Cristo entregando-se à sua sorte.*

A mistura de herói cívico e religioso tem paralelo na Joana d'Arc dos franceses. Mas nem Joana d'Arc chegou a tanto, ou seja, a repetir o próprio Cristo. Joaquim José da Silva Xavier cumpre uma trajetória que vai de um Macunaíma dos bordéis a um místico que, pelo martírio, supera o Conselheiro ou o padre Cícero. De permeio, é um servidor da ordem (alferes do Exército) que passa a adepto falastrão de um movimento contestatório que vira fumaça antes de conseguir pôr pé na realidade. Acrescente-se que fazia um bico como hábil arrancador de dentes, ofício para o qual andava com uma pequena canastra em que guardava uns tantos ferrinhos, e pronto: eis a figura de um brasileiro.

* A quem quiser saber mais recomenda-se o capítulo "Tiradentes, um herói para a República", do livro A Formação das Almas, de José Murilo de Carvalho, no qual o presente artigo é fortemente baseado.

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