Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 22, 2007

DANIEL PIZA

As ilusões infindas

Daniel Piza

Kleber Rangel Silva envia o seguinte e-mail: 'Sou seu leitor há dois anos. Tive, mais de uma vez, a impressão de que você não acredita na necessidade da ideologia e nem da utopia. A nossa contemporaneidade está marcada pelo fim de ambas, ou elas ainda são relevantes? Sempre acreditei que deveria pautar minhas ações em uma ideologia. Mas agora estou em dúvida.' Minha objeção, Kleber, é à pretensão de conceber uma sociedade perfeita. Religiões e ideologias causaram e causam muito mal em função disso. A palavra 'utopia' significa 'não-lugar' e, portanto, pode ser encarada como um exercício de imaginação crítica, uma forma de pensar alternativas ao nosso modo de viver e conviver. Mas é uma palavra tão desgastada por aqueles usos, pela ilusão de que um grupo de pessoas detém as normas para um 'outro mundo' sem atritos nem dúvidas, que não se pode usá-la sem estes senões graves. Comprovadamente não é saudável um ser humano ou grupo de 'iluminados' desenhar um futuro coletivo, pois o passo seguinte é que se arroguem ao direito de estabelecê-lo.

A imprevisibilidade da natureza humana e a variedade da paisagem social não podem ser reduzidas a um sistema de valores suficiente, imutável, fechado, que elimine de vez os vícios e as desigualdades. O efeito de tal arrogância é o oposto: ao retirar liberdade dos indivíduos, atrofiando a competição e a criatividade, o sistema todo acaba por falir. Em nome de uma ideologia salvacionista, o que se produz é uma organização autoritária que, se pode até provocar um salto de atividade pela concentração de esforços, não demora a cobrar seu preço, inclusive do bem-estar mais elementar. Além disso, as nações são uma realidade, e a crença de que qualquer uma possa ser auto-suficiente não bate com a história tal como a conhecemos. Sob o nacionalismo vigora a idéia arcana do 'povo eleito', que inevitavelmente se traduz em discriminação do estrangeiro, do estranho, como naquelas comunidades hippies que pregavam o fim dos preconceitos desde que todo mundo fosse hippie...

Mas ser contra ideologias utópicas não significa abrir mão do senso crítico e, digamos, cair no conto dito 'neoliberal' de que o planeta encontrou o regime adequado para o benefício gradual de todos. E por quê? Porque a crença num conjunto de regras básicas que, adotado por todos, trará uma estabilidade mundial duradoura, o 'fim da história', comete exatamente o mesmo equívoco. Em outro sentido, ideologias nunca deixam de existir; há sempre um corpo de valores hegemônico numa sociedade, que precisa ser contestado de forma permanente. O consumismo e o conformismo de nossos tempos são uma forma de ideologia, até mesmo de utopia, ao embutir a noção de que, por exemplo, bens materiais são fins, e não meios. Então não caia nessa de que vivemos tempos sem utopia nem ideologia. A hipervalorização das aparências prejudica o convívio social ao desprezar o conhecimento e iludir os indivíduos com promessas fáceis de aceitação; endossa sua inclinação infantil ao escape, sua incapacidade de ver a realidade em suas nuances e ironias.

Quanto a sugestões de leituras, eu poderia citar muitos pensadores que perceberam o risco do pensamento 'totalizante', que tudo quer explicar e prever - autores de Montaigne a Karl Popper, passando por Nietzsche e mesmo Freud. Mas o curioso é como os artistas sempre tiveram uma visão mais aguda desse problema. De Shakespeare à Doris Lessing de O Sonho mais Doce, passando por nosso Machado de Assis, por Cervantes ou Thomas Mann - ou Rembrandt, Picasso e Hitchcock, Mozart, Beethoven e Tom Jobim -, o que temos é uma compreensão de que a natureza humana não pode ser 'corrigida' por um punhado de boas intenções abstratas. Há quem considere que escrever sobre as artes e a idéias é menos importante do que atacar o político mentiroso do dia, mas eis o que deveria ser o motivo mais profundo para nos determos na produção cultural do passado e do presente: testemunhar por ela o vigor libertário das faculdades humanas diante das ilusões de completude.

AMÉRICA, AMÉRICA

É difícil saber como reagir a notícias como a do assassinato de 33 pessoas em Virginia, a não ser com a tristeza. O perfil do jovem sul-coreano, agressivo e anti-social, e a maneira fria como realizou seu plano apontam para sociopatia. Mas isso ainda diz pouco. Também li e ouvi muitos 'especialistas' apontando outras 'causas' (haja aspa!) como a 'cultura da violência americana' desde Jesse James ou a 'competitividade' da sociedade e da educação no país, para não mencionar a 'era da celebridade', etc. Mas aí cabe a observação de que esses problemas não são exclusivamente americanos; afinal, o ídolo do rapaz era um ator sul-coreano de filmes de ação e a maioria dos colegas e professores que matou nem eram americanos.

Sim, mesmo que seja um doente mental, que poderia ter feito o mesmo em seu país ou no Brasil ou na Alemanha, o fator do ambiente social não pode ser descartado. Mas, daí a dizer que essas tragédias são recorrentes nos EUA por motivos diretos como os citados, acho forçado, fácil demais. Pior do que a psicologia barata é a sociologia barata.

O MUNDO É UM PALCO

A peça Educação Sentimental do Vampiro, dirigida por Felipe Hirsch com textos de Dalton Trevisan, é muito boa. O universo de taras, crimes e violências do Vampiro de Curitiba é traduzido numa linguagem gráfica bem apropriada, que é o elo entre diretor e autor. A encenação parece mistura de 'graphic novel' (romances em HQ) com filme noir, cheia de ousadias no trabalho dos atores, da cenografia e da iluminação, para não falar da trilha sonora (que vai de Bartók e Schoenberg a bolero e tango). A seqüência do cinema é memorável, e também aquela em que Nelsinho (Guilherme Weber, ótimo como todo o elenco da Sutil Companhia de Teatro) tenta vencer a impotência. Piadas e histórias breves se alternam com as mais longas, por isso em raros momentos a atenção se perde.

Experimental e popular ao mesmo tempo, a montagem nos faz pensar num Nelson Rodrigues visto por Gerald Thomas (que obviamente se disse 'copiado', etc.), mas sem moralismo nem pedantismo. Em Dalton, as chamadas perversões não são busca de redenção; são inextricáveis do ser humano, como um daltonismo moral. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esse verbo.

DE LA MUSIQUE

Contei aqui do show de Teresa Salgueiro no Tom Jazz, em janeiro passado, em que a cantora portuguesa do Madredeus cantou músicas brasileiras. Acaba de sair o CD com esse mesmo repertório, Você e Eu (gravadora EMI), com o septeto de João Cristal. A audição reafirmou minha avaliação de que, apesar do prazer da primeira metade das faixas, é a partir de Inútil Paisagem (Tom e Aloysio de Oliveira) que sua voz nos dá mais prazer, pois seu timbre favorece o alongamento das notas e, pois, o clima de tristeza das canções, principalmente Modinha (Tom e Vinicius) e Valsinha (Chico e Vinicius). 'Há no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo'...

POR QUE NÃO ME UFANO (1)

Desde o período eleitoral a PF não fazia megaoperações como a desta semana, 'Hurricane', que mostrou mais um pouco do funcionamento da máfia do jogo - aquela que já envolveu o assessor do ex-ministro José Dirceu, Waldomiro Diniz -, especialmente seus tentáculos jurídicos. Ainda que eu não entenda por que os bingos (que o programa de governo de Lula em 2002 dizia que seriam fechados) podem ter máquinas caça-níqueis, é bem melhor assim, prendendo gente graúda e sem banalizar em espetáculo.

POR QUE NÃO ME UFANO (2)

Tenho viajado ao Rio toda quinzena. Eu poderia fazer igual a certos cronistas da cidade que descrevem a maravilha que é andar por Ipanema ou Leblon e não sofrer nem presenciar o menor sinal de violência, esse tema que a mídia insiste em atrelar à imagem do Rio... Ou então eu poderia fazer como o motorista que, durante a conversa sobre o domínio dos morros pelos traficantes, repetiu o bordão sobre 'o pessoal dos direitos humanos' que fica sempre do lado dos bandidos. Mas o fato é que é preciso ajustar essas visões, cair fora dessa polarização; Zuenir Ventura chamou o Rio de 'cidade partida' e isso começa nas mentes.

Sem catastrofismo, já passa da hora de enfrentar a realidade tal como ela é, sem antepor o Rio 'bossa nova' que aparece na telenovela ao Rio 'guerra civil' que aparece no noticiário. Afinal, o Estado paralelo está cada vez mais oblíquo, embutido nas instituições, e os políticos preferem fingir soluções - como a presença não sei quanto tempo do Exército (que ajudaria mais na inteligência e nas fronteiras) - a prejudicar interesses e suportar reações. Entre contemporizar e fuzilar, há uma vasta gama de atitudes a serem tomadas.

E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

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