Gaudêncio Torquato*
Os desembargadores e juízes acusados de vender sentenças para beneficiar bingueiros, caso sejam condenados, deverão retirar de suas mesas a estátua de Themis, a deusa da Justiça, cujos olhos cobertos por uma faixa simbolizam a imparcialidade no julgamento de ricos e pobres, poderosos e humildes, grandes e pequenos. Os ilícitos cometidos por quem exerce a sagrada missão de aplicar as leis constituem uma violência inominável contra a sociedade, pois induzem à desconfiança na capacidade do Estado em fazer justiça e engrossam a espiral de criminalidade que sobe vertiginosamente ao topo da pirâmide social. Se representantes do mais respeitado entre os Poderes agem como criminosos, esboroa-se a fé na instituição encarregada de assegurar justiça. O mal que uns poucos são capazes de produzir afeta o corpo do qual fazem parte. As pessoas passam a se interrogar: “Se eles podem praticar tramóias, por que devemos cumprir a lei?” A Operação Hurricane, da Polícia Federal, na seqüência de ações para desmontar as quadrilhas incrustadas nas estruturas da República, expõe mais uma faceta da crise do Judiciário, poder que, nas últimas duas décadas, tem perdido forças, seja por conta de restrições orçamentárias e legais, seja em decorrência da explosão de demandas ajuizadas a partir da Constituição de 88 ou em função de uma reforma (Emenda 45/2004) insuficiente para aperfeiçoar o combalido aparelhamento dos tribunais.
A crise deste Poder nasce na fonte patrimonialista em que se batizou o Estado brasileiro. Nessas terras tupiniquins, “onde se plantando, tudo dá”, a semente dos interesses privados foi plantada na roça da res pública, desde a alvorada civilizatória, quando se praticaram os primeiros atos da ladroagem que fincou pé no chão da administração pública. Generoso, d. João III doou, entre 1534 e 1536, 15 capitanias hereditárias aos amigos da Corte. As seqüelas geradas por esse donativo persistem até hoje, podendo-se, a partir daí, explicar a razão pela qual no Brasil o detentor do poder do Estado - políticos e juízes, por exemplo - não tem escrúpulos para enfiar no bolso privilégios, benefícios e direitos inerentes aos cargos que exercem. Quando um cidadão usa o poder que detém sobre outros em seu próprio favor, pactua com a corrupção. E, se considerarmos que o poder político tende a multiplicar sementes corrosivas, principalmente em culturas cartoriais, criam-se condições para o alastramento da “cleptocracia”, ou seja, da roubalheira do Estado. A propósito, o País ganhou três posições no último ranking de corrupção da Transparência Internacional, ocupando, agora, a 62ª posição, com a nota de 3,7 pontos.
Portando os vícios da origem do Estado, a crise do Judiciário adquire contornos definidos quando junta os adjetivos que marcam sua ação: lento, formalista e inacessível. Sua estrutura tem sido incapaz de administrar a explosão dos novos e complexos conflitos de uma sociedade em mutação e propiciar tutela jurisdicional tempestiva aos litígios clássicos. A excessiva demora do processo traz insegurança e o acúmulo de demandas gera colapso no sistema. Num período de dez anos, de 1988 a 1998, o número de feitos aumentou 25 vezes. Em 1990, recebia o Judiciário, na primeira instância, um processo para 40 habitantes. Em 2000, um para 20 habitantes. O cipoal legislativo - 188 mil leis, das quais menos de um terço em vigor - atrapalha o ordenamento jurídico, provocando interpretações contraditórias, controvérsias e aumento progressivo dos recursos. Apesar de termos um modelo federalista, copiado do norte-americano, a esfera federal é quem legisla nos campos do direito material e processual, gerando excesso de centralização. Os tribunais superiores, por seu lado, mais atendem às demandas dos Poderes Executivo e Legislativo do que às lides oriundas do povo.
Os instrumentos criados para assegurar celeridade à Justiça - juizados especiais de pequenas causas cíveis e criminais, rito sumaríssimo na Justiça do Trabalho, súmula vinculante, súmula impeditiva de recursos, tutela antecipada - são uma gota d’água no oceano dos processos. A transparência deixa a desejar, reforçando o conceito de que o Judiciário possui “caixas-pretas”, que escondem gastos com estruturas, a liturgia dos julgamentos e os modos de pensar e agir dos juízes. Para desespero daqueles que conseguem chegar vitoriosos ao cume da montanha, os entes públicos freqüentemente se negam a cumprir decisões judiciais, passando a recorrer sistematicamente, mesmo que a jurisprudência sobre a questão em tela seja consensual nos tribunais. O próprio Estado é quem mais entope as veias do Judiciário. O “circo dos horrores” se completa com a dança para ingresso na magistratura. Com todo o respeito que o Poder merece, carrega-se a impressão de que os quadros precisam atravessar um corredor moral e ético mais longo que o atual. Significa defender para os magistrados sólida base psicológica e densa preparação, seja nos campos específicos do Direito, seja em áreas mais abrangentes do conhecimento e nos campos da ética pessoal e profissional, do relacionamento humano, da hermenêutica, da liderança, do raciocínio lógico e dos ensinamentos práticos. É mais que compreensível o processo de juvenilização do corpo Judiciário, com o ingresso de jovens sem muito conhecimento e experiência numa folha que conta com cerca de 14 mil juízes, 1 para 13 mil habitantes. Houve, urge reconhecer, um rebaixamento dos níveis. Não é de admirar que, no meio da borrasca, respingos de lama caiam sobre o altar da Justiça.
Os juízes, dizia Bacon, devem ser mais instruídos que sutis, mais reverendos que aclamados, mais circunspectos que audaciosos. Acima de todas as coisas, a integridade é a virtude que na função os caracteriza. A lição, de 1597, ainda é atual. Magistrado por trás das grades é o flagrante da tragédia ética vivida pelo País. Da primeira ou da última instância, no mais distante ou no mais central rincão da Pátria, o juiz deve ser, por excelência, o protótipo das virtudes.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político