O homem da Guanabara Pesquisa sobre o Lacerda administrador completa uma das mais ricas biografias da história do Brasil Lucila Soares Fotos divulgação | | Em visita a uma favela carioca (à esq.) e prestando contas ao eleitorado: em cinco anos, obras que deram uma nova cara ao Rio de Janeiro |
O final dos jantares oferecidos por Carlos Lacerda durante seu mandato como primeiro governador da Guanabara (1960-1965) era, por vezes, indigesto para os convidados. Entusiasmado pelas obras a que se lançara com ímpeto de se credenciar às eleições presidenciais previstas para 1965, ele intimava delicadamente os comensais a fazer a digestão visitando algum viaduto, túnel ou conjunto habitacional em construção. Lacerda ganhava, assim, companhia para uma rotina que cumpriu nos cinco anos à frente do recém-criado estado da Guanabara. O governador saía para fiscalizar o andamento de uma obra ou o atendimento à população num hospital. E não hesitava em demitir no ato o responsável se as coisas não andassem a seu contento. Eleito sem nenhuma experiência administrativa, Lacerda fez um governo considerado até hoje o melhor que o Rio de Janeiro já teve. Meteu-se em polêmicas que perduram, como a remoção de favelas. Mas fez obras que em boa parte deram ao Rio sua cara atual e, acima de tudo, revelou-se um administrador racional e moderno. Defendia a ordem nas contas do governo (e cumpriu essa exigência à risca na Guanabara) e a profissionalização do funcionalismo num Brasil que não tinha sequer Banco Central e onde imperava o pistolão como forma de acesso ao serviço público. Eleito por uma ampla coligação e com vitória apertada sobre Sérgio Magalhães, candidato do PTB, montou um secretariado em que exigia a melhor qualificação profissional para o cargo, independentemente de partido. Acompanhava de perto cada área de seu governo, mantinha reuniões semanais com todos os secretários, mas foi pioneiro na descentralização, criando regiões administrativas que funcionavam como subprefeituras. Tudo isso sem deixar de lado o carisma, a originalidade, a verve, o veneno e a grande capacidade de fazer inimigos que sempre foram suas marcas. É esse o retrato que emerge de Lacerda na Guanabara (Odisséia; 320 páginas; 45 reais), de Maurício Dominguez Perez, que chega às livrarias nesta semana. Perez, carioca de 39 anos, fez uma escolha difícil quando elegeu a figura do governador Lacerda como tema de sua tese de doutorado em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Carlos (homenagem a Karl Marx) Frederico (homenagem a Friedrich Engels) Werneck de Lacerda (1914-1977) é uma das figuras mais originais da história política do Brasil. Grande orador, jornalista de inteligência e cultura muito acima da média, foi comunista, liberal, de direita e, por fim, golpista que pregou abertamente contra a posse de presidentes eleitos democraticamente. Anticomunista ferrenho, Lacerda apoiou quase todas as tentativas de golpe ocorridas no país entre a redemocratização, em 1945, e a tomada do poder pelos militares, em 1964. Tornou-se, com isso, um dos mais odiados e também um dos mais admirados políticos de todos os tempos no Brasil, talvez apenas comparável nesse quesito justamente a Getúlio, seu grande antagonista. É quase estranho que alguém, diante dessa trajetória fulgurante, prefira debruçar-se sobre programas de governo, despachos burocráticos, orçamentos, exposições de motivos, prestações de contas. No entanto, ao mergulhar no aparentemente árido mundo da administração, Perez consegue traçar uma parte do retrato de Lacerda que ainda não fora muito bem desenhada, juntando o líder carismático ao administrador racional, numa receita de sucesso. "O carisma do líder motiva a burocracia na busca de metas e a eficácia da burocracia alimenta a chama da liderança", resume o autor. Seu objetivo inicial era entender por que Carlos Lacerda teve tanto êxito, e investigar até que ponto eram verdadeiras algumas teses a esse respeito. Uma delas: a Guanabara nasceu com mais dinheiro do que jamais tivera o Rio como capital da República. Perez rebate. É verdade que a receita da nascente Guanabara equivalia à soma das rendas de Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Mas isso já acontecia nos anos 50. A diferença não estaria nos números, mas na capacidade administrativa. Com recursos semelhantes aos de seus antecessores, Lacerda tirou do papel a maior parte dos projetos engavetados ao longo dos anos 50 e ainda traçou a cidade do futuro. Vem da prancheta do urbanista grego Constantinos Doxiadis, contratado por ele, um plano urbanístico que inclui a Linha Vermelha e a Linha Amarela, ambas construídas nos anos 90. Perez mostra também que, embora o glamour do Rio seja um fato, a falta de investimentos transformara a cidade num abacaxi administrativo. Em 1960, a cidade tinha 3,3 milhões de habitantes e crescera quase 40% nos dez anos anteriores. Havia 147 favelas, onde viviam 10% da população. A precariedade era retratada com bom humor em ditos como "Rio, cidade que me seduz, de dia falta água e de noite falta luz", mas a insatisfação era crescente. Lacerda fez seu plano de governo baseado na pauta que estava evidente desde o início dos anos 50. "Não houve nenhuma solução genial", diz Perez. | Na Tupi, em um dos inúmeros pronunciamentos pela TV: o dom da oratória como arma no governo | O dinheiro para essa montoeira de obras não veio do exterior, como se costuma alardear. O Banco Mundial financiou 42% da adutora de Guandu, ainda hoje responsável pela maior parte do abastecimento de água da cidade – o restante foi pago pela correção da tarifa, congelada desde 1947. Também não veio de nenhum tarifaço, e sim do prosseguimento da correção de impostos que começou na década anterior, como demonstra Perez em inúmeros gráficos e tabelas. A educação mereceu atenção especial. No governo Lacerda, construíram-se escolas e contrataram-se professores em ritmo acelerado. O resultado foi o fim do déficit de vagas no ensino primário, algo inédito nos anos 60. O governador comemorou com um decreto que previa processo contra os pais que não matriculassem seus filhos na escola. A remoção de favelas é o capítulo mais polêmico da administração Lacerda. Em seu governo, foram removidas doze favelas, a maior parte na Zona Norte da cidade, e apenas uma na Zona Sul. Numericamente é pouco, e ele não foi o primeiro governante a tomar essa acertada medida. Mas não há dúvida de que foi durante seu mandato que essa política ganhou impulso, inclusive com a construção de seu mais conhecido símbolo: a Cidade de Deus, conjunto habitacional que sintetiza todas as mazelas desse modelo. Foi erguida numa região distante do centro do Rio, sem infra-estrutura alguma de transporte, demonstrando a despreocupação com esse aspecto. Evidentemente não se pode atribuir a Lacerda total responsabilidade pelos problemas atuais, num estado em que a decadência econômica e a demagogia dos governantes só agravaram o problema habitacional. Mas esse é um ponto importante e relativamente pouco analisado no texto – talvez porque pertença a uma seara urbanística com forte componente ideológico na qual o autor se sente menos à vontade. "Pretendi apenas mostrar que ele não era um demônio", diz Perez. | Cara a cara com um cidadão: reivindicações ouvidas in loco | Essa é uma lacuna que não compromete a qualidade de Lacerda na Guanabara. O livro resgata a memória de um personagem fundamental da história do Brasil, que morreu no ostracismo depois que o golpe de 1964 lhe roubou simultaneamente o sonho da Presidência e a bandeira do anticomunismo. Um resgate, aliás, que teve a participação decisiva de Carlos Augusto Lacerda, seu neto. O livro seria lançado pela Nova Fronteira, fundada por Carlos Lacerda em 1965. Quando estava quase pronto, a editora passou ao controle da Ediouro, que declinou do título por julgá-lo inadequado à linha que pretende implementar. Carlos Augusto decidiu, então, lançá-lo por sua própria editora, a Odisséia. Um nome que ganhou novo simbolismo a partir daí.
| LIVROS 2 de maio de 2007 | | | Trecho de Lacerda na Guanabara, de Maurício Dominguez Perez capítulo 1 A trajetória política de Carlos Lacerda A crise crônica que afeta o Rio de Janeiro tem levado a sociedade carioca a discutir com crescente interesse, e inclusive com intranqüilidade, o futuro da sua cidade. Os meios de comunicação social abriram um considerável espaço nos seus veículos e ouviram especialistas de distintas áreas. Na pauta dos debates observa-se uma constante preocupação por definir a verdadeira vocação carioca e fluminense, bem como por apresentar alternativas para o crescimento socioeconômico desta região. Exemplo recente dessa situação é voltar a pôr em xeque a fusão ocorrida em 1975 entre o antigo estado do Rio e o estado da Guanabara. O debate sobre o Rio transborda os gabinetes dos políticos e os corredores dos centros de pesquisa para invadir as ruas e as páginas dos jornais. Governadores, prefeitos, antropólogos, jornalistas, historiadores e empresários expõem suas opiniões e soluções. Não deixa de ser enriquecedora essa contribuição interdisciplinar. A história, por sinal, não deixa de possuir um papel importante, como recorda Ortega y Gasset: O saber histórico é uma técnica de primeira ordem para conservar e continuar uma civilização provecta. Não porque dê soluções positivas ao novo aspecto dos conflitos vitais — a vida é sempre diferente do que foi —, mas porque evita cometer os erros ingênuos de outros tempos.1 Os fenômenos não surgem espontaneamente: há um lastro histórico que influencia o nosso modo atual de ser e proceder. Portanto, para compreender a cidade tal como hoje ela se encontra, é indispensável retornar às suas raízes, de forma mais concreta, nos seus três últimos momentos institucionais, isto é, como sede do poder federal, como cidade-estado e como estado pós-fusão. Dentro desses três momentos, há alguns marcos importantes que devem nortear a análise. Primeiramente, o estudo da cultura política brasileira e carioca, seu impacto na administração pública, bem como as discrepâncias entre o campo político nacional e o local. Em segundo lugar, o estudo do quadro econômico carioca que permita uma melhor avaliação dos progressos e retrocessos registrados e contribua para um parecer sobre a viabilidade da cidade e do estado. Ponderar também sobre os efeitos objetivos e subjetivos, positivos e negativos da perda da capitalidade, o modo como foi estruturada a divisão entre as competências federais, estaduais e municipais e, finalmente, mas não menos importante, analisar a competência das diversas gestões e o seu peso no resultado final obtido. Dentro do atual debate, há uma série de perguntas que estão sendo levantadas e cujas respostas perpassam o nascimento do estado da Guanabara. Qual foi o saldo da tutela federal? Qual era a situação da cidade naqueles anos? De que forma a nova cidade-estado se estruturou e conseguiu sobreviver? Houve nos anos 1950 ou nos anos 1960 um "período dourado" para o carioca? Quais foram os custos e os resultados obtidos com a reforma administrativa ocorrida com a transferência da capital — reorganização de órgãos públicos, remanejamento de pessoal, estrutura fiscal etc.? Na verdade, a experiência real dos 15 anos de vigência do estado da Guanabara habilita-o como um possível modelo para o Rio de Janeiro, não necessariamente com seu retorno institucional, mas principalmente como uma escola de governo e gestão. Não bastando essas razões, deve-se acrescentar que a primeira experiência guanabarina foi capitaneada por uma das personalidades mais complexas da história da República. A presença de Carlos Lacerda é tão marcante no governo local e na esfera nacional nesse período que se torna necessário analisar, dentre os resultados obtidos, o que foi decorrente de uma estrutura e o que decorreu do estilo Lacerda de atuar. A memória seleciona do passado aquilo que mais lhe convém. Os grupos políticos, econômicos e culturais hegemônicos comumente atuam como agentes dessa seleção. Malvisto pelo regime militar, pela oposição e pela esquerda, o Lacerda político não fugiu a esse esquema e, obscurecido nas décadas seguintes, tornou-se persona non grata. Chama a atenção, por outro lado, como a imagem de Lacerda administrador resiste, permanece e chega a ser reverenciada pela memória coletiva carioca, inclusive por parte desses mesmos grupos que o rechaçaram. Isso se deve provavelmente ao fato de que o processo de construção e reconstrução da memória não pode ultrapassar certos limites. Qualquer cidadão carioca que sai às ruas evidencia as marcas do primeiro governo da Guanabara. Lacerda também se torna muito atual quando se assistiu na última década à ascensão de diversos políticos de cunho carismático. Por parte de certos segmentos, sobretudo na intelectualidade, há uma forte rejeição a esse tipo de políticos pela suposta pobreza de idéias que apresentam, pelas práticas políticas implementadas — por exemplo o assistencialismo —, por reduzirem o debate político a questões de cunho estético-emotivas e pelos poucos resultados obtidos na esfera administrativa. Mas Lacerda, se por um lado conseguiu galvanizar um fenômeno como o lacerdismo e utilizou a oratória de tal forma que fazia tremer as instituições democrá- ticas, por outro lado pertenceu ao seleto grupo que conduzia as questões nacionais e demonstrou possuir um modo fortemente racional de administrar a coisa pública. Há nele, portanto, uma conjugação de fatores pessoais e impessoais que resultam ser de grande interesse para a análise político-administrativa. Dentro da seqüência dos capítulos, estabeleceu-se inicialmente um quadro da situação política e administrativa do Distrito Federal ao longo dos dez anos anteriores. A partir desse referencial foi possível formular de forma mais criteriosa uma análise comparativa qualitativa e quantitativa do primeiro governo do estado da Guanabara. De posse dessas informações, procurou-se conhecer a estrutura tributária que foi montada para captar os recursos necessários à implementação dos projetos desenvolvidos ao longo desse governo. Na medida em que os dados estavam disponíveis, fez-se uma avaliação em relação aos anos anteriores e em relação aos outros estados brasileiros, procurando sempre salvaguardar a especificidade da cidade-estado. A seguir, com a análise das idéias que norteavam o pensamento econômico naqueles anos, esboçou-se um balanço das perspectivas da cidade, procurando-se sinais de um possível esvaziamento econômico. Comparou-se o contexto histórico da administração pública brasileira e a reforma administrativa propriamente dita que foi empreendida na Guanabara. Finalmente, o foco se centrou nas principais políticas públicas do governo Lacerda, procurando-se avaliar de forma mais cuidadosa os projetos desenvolvidos na área da educação, do saneamento do meio (o problema da água) e do urbanismo (envolvendo a expansão da estrutura viária e a remoção das favelas). 2. a memória política carioca A memória comum dos cidadãos da cidade do Rio de Janeiro consta de diversas representações sobre o governo Lacerda que podem ser sintetizadas em duas idéias principais. A primeira consiste na formação de uma imagem segundo a qual o governo desse período aparece como empreendedor de diversas obras que afetaram a infra-estrutura urbana da cidade. As mais conhecidas são a construção do parque do Flamengo, dos túneis Rebouças e Santa Bárbara, de diversas novas avenidas e viadutos, bem como a elaboração de um plano diretor para a Guanabara de onde futuramente resultariam as linhas Vermelha e Amarela. Esta representação colocou o ex-governador no mesmo patamar de prefeitos do Rio de Janeiro tais como Pereira Passos, Paulo de Frontin e Henrique Dodsworth, conhecidos como reformadores da cidade. A segunda idéia, muito relacionada à primeira, está na imagem de Lacerda como um administrador que teve capacidade para gerir algumas das complexidades de uma cidade que é, ao mesmo tempo, vitrine e caixa de ressonância do país e local de graves problemas sociais. Entre os fatos que consolidaram essa imagem podemos destacar o número de escolas inauguradas, o que eliminou o déficit de vagas no ensino público primário; a criação de regiões administrativas funcionando como subprefeituras em cada bairro; a construção da adutora do Guandu, que solucionou a crônica falta d'água na cidade; a implementação de uma política habitacional que procurou ser uma solução para o polêmico problema da favela; a criação de empresas públicas como a Companhia para o Progresso da Guanabara (Copeg), a Companhia de Transportes Coletivos (CTC), a Companhia Estadual de Águas da Guanabara (Cedag) e a Companhia Estadual de Telefones (Cetel), que tinham a finalidade de agilizar e descentralizar a administração pública. Recentemente, pode-se comprovar a atualidade desta discussão durante as quatro últimas campanhas para prefeito da cidade. Em 1992, o candidato Cesar Maia não hesitou em associar a figura de Lacerda à sua campanha eleitoral, utilizando-o como modelo de administrador competente. Em 1996, diversos candidatos procuraram recorrer a essa associação, utilizando-a como referência do que pretendiam realizar caso fossem eleitos. A revista Veja-Rio, refletindo sobre essas questões, apresentou uma matéria de capa com a manchete "Trinta anos sem Lacerda: porque ninguém faz o que ele fez?". Tornou-se tema de reportagens de vários jornais, como em O Globo, com o título "Lacerda, administrador que todos querem imitar"3, e na mesma época no Jornal do Brasil4, em que se apresentam depoimentos de todos os candidatos à prefeitura nas eleições de 1996, mesmo daqueles que tradicionalmente se posicionaram politicamente como oposição a Lacerda, com comentários de cunho elogioso ao ex-governador pela capacidade em efetuar mudanças na cidade, fazendo ressalvas somente ao seu passado político. Em 2000, num dos programas eleitorais televisivos, Cesar Maia apareceu num trecho da Linha Amarela — construção de sua autoria e que leva o nome do ex-governador — ao lado de Maria Cristina, filha caçula de Lacerda que o apresentava como "sucessor administrativo" de seu pai. Essas imagens de Lacerda como administrador coexistem com uma outra face, que é a do político e jornalista. Neste caso, a memória nos traz a lembrança do derrubador de presidentes — "o assassino de Vargas" —, do golpista, da oratória anticomunista, incendiária e contundente capaz de abalar as instituições democráticas. A separação dessas duas faces, de certa forma opostas e paradoxais, o lado construtivo e o lado destrutivo, só foi possível, em parte, com o término da Guerra Fria, que trouxe consigo o fim de uma visão bipolar do mundo e da política; no Brasil, com o fim do regime militar e o retorno à normalização democrática; no Rio de Janeiro, com uma seqüência de administrações que não impediram o agravamento de diversos problemas sociourbanos. Com esta mudança na conjuntura histórico-política, tornou-se possível referir-se ao administrador Lacerda sem arcar com o desgaste de uma possível alcunha negativa. Analisar a administração de um governo não é tarefa que compete a uma ciência apenas, antes é necessário contar com a colaboração daquelas que estudam a vida em sociedade por meio da sua ótica econômica, social etc. Tendo isso presente, procuramos compreender como ocorrem as interseções que existem entre história, administração, ciência política e economia. Reabilitada depois de um período durante o qual foi vista como uma história das elites, pontual, pessoal, descritiva, insuficiente para representar a realidade, a história política possui um papel importante para este estudo. Concretamente, enquanto a escola des Annales constituiu uma geração de historiadores que questionaram o político em prol de uma hegemonia do econômico e do social, atualmente compreende-se que a política tenha uma posição de destaque na economia, na sociedade, no direito público, na mídia e em todos os campos onde se tomam decisões. Segundo Georges Balandier, "o setor político é um daqueles que mais são marcados pela história, um daqueles em que melhor se aprendem as incompatibilidades, as contradições e as tensões inerentes a toda a sociedade". Outro campo teórico encontra-se na história da administração, vista como "a prima pobre da história política". Depois de um período de ostracismo, juntamente com a política, teve um retorno pouco condizente com a sua importância e foi inserida como instrumento auxiliar na organização dos acervos sem que houvesse uma análise específica que enriquecesse os dados obtidos. Não é irrelevante considerar que a administração envolve a execução de políticas públicas, a viabilidade da implementação das ideologias, o palco da tomada de decisões de cunho econômico e social e é, por assim dizer, o "sistema nervoso do cidadão diante do Estado", uma vez que é através da administração que o cidadão sente a ingerência do Estado na sua vida cotidiana. O administrador também é uma figura de interesse para a história, já que ele não pode ser observado como um técnico que toma decisões de acordo com critérios racionais apenas. Deve necessariamente interagir com políticos, empresários, funcionários, a imprensa e outros segmentos relevantes, antes e depois da execução das medidas. Por sua vez, as ciências econômicas permitem adicionar a essa discussão o contexto da economia brasileira e carioca daquele momento, proporcionando uma melhor compreensão do peso e do papel que essas variáveis tiveram na condução das políticas adotadas. Importa ainda considerar que, sendo a Guanabara um estado-cidade, as políticas públicas acabam por convergir também no campo do urbanismo e da antropologia urbana. Aí encontramos importantes contribuições para a análise da política de remoção de favelas, bem como para a reforma estrutural da cidade ocorrida por meio da construção de vias expressas, aterros e viadutos. É possível apontar uma série de trabalhos sobre o governo Lacerda elaborados dentro de uma perspectiva política8. A bibliografia torna-se escassa quando se aborda a vertente administrativa e se analisam os dados econômicos e o impacto social das medidas tomadas naquela gestão. O objetivo deste livro é precisamente aprofundar essa abordagem que desperta tanta curiosidade no público. Pretende-se, portanto, crescer na compreensão das mudanças ocorridas na cidade ao longo daqueles cinco anos, procurando analisar os fatores responsáveis por essas mudanças, os persona- gens principais envolvidos, a mentalidade de que estavam imbuídos e as conseqüências advindas dessa transformação. Tendo sido também um governo que deu início à curta experiência de 15 anos da cidade-estado, seu estudo torna-se estratégico para o esforço que vem sendo realizado no sentido de avaliar o estado-cidade. Quais são os caminhos que o Rio deve empreender para retomar seu crescimento e seu papel de destaque na Federação? A resposta a essa pergunta passa necessariamente pela compreensão de um momento histórico que foi um ponto de inflexão na vida da cidade. | Copyright © Editora Abril S.A. - Todos os direitos reservados | |