Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 21, 2007

VEJA Entrevista: Robert Hughes


O guardião da arte

O mais famoso especialista no assunto fala
por que será sempre essencial voltar os
olhos para os mestres do passado


Marcelo Marthe

O australiano Robert Hughes, de 68 anos, é o mais conhecido crítico de arte vivo. Por três décadas, ele foi editor da revista americana Time. Dono de um estilo tão erudito quanto implacável, produziu ensaios brilhantes e também ficou famoso por destruir reputações. Entre o fim dos anos 90 e o início desta década, ele viveu um inferno pessoal. Em 1999, quase perdeu a vida numa colisão de carro em seu país. Além de enfrentar mais de vinte cirurgias e ficar três semanas em coma, Hughes se viu às voltas com um processo sob a acusação de dirigir perigosamente. Foi absolvido, mas voltou à mira da Justiça australiana por desancar os promotores do caso. Em 2001, outro baque: seu único filho, de 34 anos, cometeu suicídio. Recentemente, ele lançou o primeiro volume de suas memórias. E acaba de sair no Brasil, pela editora Companhia das Letras, o estudo que lançou em 2003 sobre o espanhol Francisco Goya (1746-1828). De Nova York, onde vive com a mulher, a pintora Doris Downes, Hughes concedeu uma entrevista em que exalta os mestres do passado, condena o mercado de arte de hoje e fala sobre seu acidente.

Veja – O senhor escreveu sobre assuntos tão variados quanto a arquitetura de Barcelona e a história da Austrália, mas o único artista ao qual devotou um livro individualmente foi Goya. Por que ele é tão especial?
Hughes – Como todo grande artista, o primeiro dado essencial sobre Goya é que sua obra extrapola seu tempo. Por meio de sua trajetória e de suas idéias, pode-se entender melhor a história da Espanha e da Europa. Mas não só. Mais que qualquer outro pintor, Goya nos permite obter um conhecimento profundo da natureza dos sentimentos e da idéia de justiça, assim como de seus reversos, a injustiça e a crueldade. Nós vivemos num mundo de ironias extremas e de paixões e agressões tão desatinadas quanto as de que trata Goya. A loucura de que ele nos fala é universal e atemporal. Apesar de representar tanto para a arte, ainda faltava um livro que o alçasse à sua devida dimensão. Julguei que era uma tarefa importante fazê-lo.

Veja – O senhor concebeu a obra quando se recuperava de um acidente de carro quase fatal que sofreu em seu país, a Austrália. De que forma isso o influenciou?
Hughes – Volta e meia, sou acometido por vívidas recordações daquilo que se passou em minha cabeça naqueles dias difíceis. Tive alucinações e sonhos absurdos. Se fosse um pintor, certamente teria vasto material para me inspirar. Eu renasci depois do acidente. Ele me levou a conhecer a experiência da dor. E também a sentir o medo da morte como algo concreto. Isso tudo sem dúvida se refletiu no livro. Hoje, acredito que um escritor que não conhecesse o medo, a dor e o desespero não teria uma visão completa do universo de Goya. Não estou dizendo, é óbvio, que seja necessário quase perder a vida num acidente para entender um artista. Mas isso certamente facilitou a apreciação da matéria-prima de sua obra, o sofrimento.

Veja – Em seu recém-publicado volume de memórias, o senhor conta como uma viagem a Florença durante a enchente que destruiu boa parte da cidade italiana e de seus tesouros, em 1966, fixou sua crença no valor do passado para a arte. Por que chegou a essa conclusão?
Hughes – Em Florença, vivi a experiência de encontrar destroços de peças renascentistas em meio à lama, uma tragédia que me fez compreender de uma vez por todas que aquilo que foi criado no período de ouro da arte é insubstituível. Não apenas porque não se poderiam refazer tais obras. Vivemos numa era muito pobre em matéria de artes visuais. Hoje se podem encontrar bons escultores e pintores, mas a idéia de que a arte atual possa um dia se igualar às enormes realizações do passado é um disparate. Nenhuma pessoa séria, por mais que se empolgue com a arte contemporânea, poderia acreditar que ela um dia será comparada àquilo que foi feito entre os séculos XVI e XIX.

Veja – Como as pessoas podem se relacionar com a obra dos grandes pintores do passado?
Hughes – Olhando para o que eles produziram. Aprendendo a entender e a amar sua arte. Os mestres da pintura se relacionam a nós da mesma forma que as grandes obras literárias e as composições musicais do passado. Como o homem atual pode se relacionar com Cervantes? Por meio da leitura de sua obra. Dom Quixote continuará sendo uma história contemporânea em qualquer tempo e lugar. É preciso ter em mente que a arte é feita antes de tudo para deliciar os olhos e o espírito. É por meio desse apelo intuitivo que ela nos arrebata e conduz, no fim das contas, a um conhecimento mais profundo de nossa natureza.

Veja – Qual o papel das artes plásticas na formação cultural de uma pessoa?
Hughes – Não recomendo que se olhe para os grandes artistas com o intuito de atingir um nível cultural superior, pois, como já disse, o objetivo maior da arte é dar prazer. Mas posso falar de seu caráter enriquecedor pela minha própria experiência. Muito antes de eu me tornar um crítico, a arte desempenhou um papel fundamental em minha vida, na medida em que me fez entender certas questões existenciais mais claramente do que qualquer livro ou aula teórica o fariam. Seria um exagero dizer que se pode educar alguém por meio da arte. Mas ela é capaz de fazer de nós pessoas melhores e mostrar que existem muitos mundos além do nosso umbigo.

Veja – Certas correntes do modernismo difundiram a idéia de que o passado é um peso do qual a arte precisa se livrar. O que o senhor pensa disso?
Hughes – A noção de que há uma oposição entre o presente e o passado é estúpida. Trata-se de uma deturpação vulgar do ideário modernista de primeira hora. Ele consistia em questionar o tradicionalismo, mas não a herança dos antigos mestres. Os futuristas italianos, é verdade, chegaram a propor a destruição das obras de arte criadas no passado – como se fosse possível apagar sua influência apenas com sua extinção por meios físicos. Mas o fato é que toda arte digna de nota feita no século XX se baseou no passado. Os modernistas que realmente importam, como Matisse e Picasso, nunca se pautaram por sua rejeição. Muito pelo contrário: as fontes de que extraíram sua inspiração foram os artistas da Renascença e do século XVIII.

Veja – O senhor teve contato pessoal com artistas como o americano Andy Warhol. Quais suas impressões dele?
Hughes – Warhol foi uma das pessoas mais chatas que já conheci, pois era do tipo que não tinha nada a dizer. Sua obra também não me toca. Ele até produziu coisas relevantes no começo dos anos 60. Mas, no geral, não tenho dúvida de que é a reputação mais ridiculamente superestimada do século XX.

Veja – E quanto ao francês Marcel Duchamp?
Hughes – Foi um prazer conhecê-lo, embora certamente não seja o primeiro artista em minha lista dos mais importantes de sua época. Sua elevação à condição de figura "seminal" nunca me convenceu. Já vi de perto todos os trabalhos que ele fez e nunca obtive nenhum prazer com eles. Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de idéias notáveis. Pessoalmente, prefiro um pintor como o francês Pierre Bonnard. Muita gente considera Duchamp um deus e Bonnard um impressionista enfadonho. Mas eu gostaria muito mais de ter em casa um de seus belos quadros do que um trabalho de Duchamp. Além disso, a influência de Duchamp sobre a arte contemporânea foi liberadora, mas também catastrófica.

Veja – Por quê?
Hughes – Porque ser o pai dessa bobagem chamada arte conceitual não é uma distinção de que se orgulhar. Para compreender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras tolas em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos infantis. Ou precisa ler uma bula para entender o que o artista quis dizer.

Veja – Nos últimos anos, obras de grandes artistas atingiram preços astronômicos em leilões. O que explica que se paguem 104 milhões de dólares por uma tela de Picasso?
Hughes – Francamente, não consigo imaginar uma boa razão. Os preços se tornaram tão obscenos e sem sentido que, a meu ver, só podem ser resultado de algum tipo de doença social. As pessoas que se sujeitam a pagar tanto por um quadro são movidas por motivações ridículas, como ostentar seu prestígio e poder. Não compactuo com essa insanidade.

Veja – Não há arte que valha tanto assim?
Hughes – Para mim, nem a maior obra-prima. A supervalorização atende aos interesses de certos marchands e colecionadores, mas é danosa para a arte. Passa-se a valorizar um artista ou tendência em função de seu cacife no mercado, e não da importância de suas realizações. Além disso, sua transformação em bem de consumo de luxo muitas vezes dificulta que um dia o grande público possa contemplá-las em museus.

Veja – Nas últimas décadas, o interesse pelas artes plásticas parece ter diminuído – desde sua saída da Time, por exemplo, a revista não tem dado o mesmo destaque ao tema. A arte perdeu sua centralidade?
Hughes – É triste, mas o fato de as pessoas terem obsessão pelos altos preços pagos por quadros famosos não significa que elas queiram saber algo mais sobre arte em si. Ela passou a ser vista apenas como um item a mais no cardápio do entretenimento, como as atrações do cinema e da TV. E também a ser avaliada com base nos mesmos parâmetros. Fala-se de um artista não por sua relevância, e sim pelo valor que suas obras atingem – como se fosse o orçamento milionário de um filme. Ou então por sua popularidade – como se fosse o índice de audiência de um programa. É uma visão distorcida.

Veja – Em suas memórias, o senhor comenta que os 3 200 dólares atingidos por um trabalho de Robert Rauschenberg nos anos 60 não dariam para pagar dois drinques de Damien Hirst, o mais incensado artista inglês atual. A arte contemporânea está supervalorizada?
Hughes – É claro que sim. Daqui a vinte anos, veremos quanto se pagará pelas obras de um sujeito como Hirst – que, aliás, não me interessam nem um pouco. Hirst e outros de sua geração fazem do escândalo uma arma de marketing. Mas um renascentista como Piero della Francesca conseguiu ser radical num nível que ele nunca passou nem perto de alcançar.

Veja – O que o senhor pensa desse esforço dos curadores de museus para transformar as exposições em entretenimento para as massas?
Hughes – Não sou contra o entretenimento, em princípio. Só penso que não é função do museu preocupar-se em produzir eventos com esse fim. Há mostras maravilhosas que calham de ser realmente populares. Só que pode haver outras também maravilhosas, mas que não têm tanto apelo – e é saudável que os museus continuem lhes dando espaço. É impossível determinar a qualidade de uma exposição em função de seu sucesso de público.

Veja – Para alguns especialistas, eventos como as bienais de São Paulo e Veneza tornaram-se obsoletos. O senhor concorda?
Hughes – Não ligo a mínima para bienais, trienais, quadrienais ou coisas que o valham. Elas hoje têm relevância apenas para os negociantes de arte. Por baixo da fachada novidadeira, a maioria desses eventos se transformou em feiras vulgares. Nunca estive na Bienal de São Paulo. Mas a de Veneza eu conheço bem. Alguns anos atrás, fui convidado a colaborar com seus organizadores e me vi em tal pesadelo que renunciei a meu posto. Já que é tudo comércio, melhor deixar para quem entende disso.

Veja – Países relativamente novos como o Brasil e a Austrália estão destinados a ter sempre um papel secundário na arte?
Hughes – Não direi que será sempre assim. Mas eles enfrentam um problema e tanto: não têm controle sobre o mercado. Parece-me inusitado que a Austrália amargue uma presença próxima do zero na arte mundial enquanto qualquer porcaria que se produz na Califórnia logo alcança visibilidade. A atmosfera do circuito internacional de arte é corrupta, já que se vive de criar modismos e falsos novos gênios para faturar. Essa é uma das razões pelas quais eu me aposentei como crítico. Prefiro me concentrar em alguns artistas cujo trabalho realmente importa a ver minhas resenhas sendo usadas para inflar as cotações alheias. O presente, em arte, é sempre um terreno pantanoso e sujeito aos golpes de marketing. Tome-se como exemplo o carnaval que se faz no momento a respeito da arte chinesa. A maior parte do que se convencionou rotular de pós-modernismo chinês é apenas uma empulhação bem promovida pelos marchands e casas de leilões. As vítimas deles são os colecionadores novos-ricos que pululam pelo mundo afora e compram tudo o que vêem pela frente. Eles podem ter dinheiro, mas não passam de idiotas e vítimas da moda.

Veja – Antes de se tornar um crítico, o senhor atuou como cartunista e também pintava. Há alguma verdade no velho clichê de que todo crítico é um artista frustrado?
Hughes – Absolutamente nenhuma. Eu me considero um artista completo, nem um pouco frustrado. Minha arte é escrever. Nunca tive inveja dos artistas nem escrevi nada com o intuito de me vingar deles.

Veja – O senhor coleciona arte?
Hughes – Não, por incrível que pareça. Tenho algumas gravuras de Goya que adquiri ainda na juventude e também telas de minha mulher, Doris. Mas nunca fui um colecionador. E vou lhe dizer por quê: logo descobri que, como crítico, isso não seria ético.

Arquivo do blog