Se faltar mesmo o gás da Bolívia, a curto prazo, não há alternativa alguma, e isso pode acabar afetando as empresas que usam gás natural. O corte anunciado ontem está despertando justamente esse temor. Mas, se não houver o cataclismo, que chance tem o país de se prevenir contra déficits no abastecimento de energia? Um estudo do especialista Mário Veiga mostra que há riscos maiores que os que o governo admite, menores que os que alguns alardeiam. Ainda há tempo. Não muito.
Veiga fez o trabalho dentro do projeto “Energia Transparente”, do Acende Brasil, e sua preocupação foi tentar esclarecer que risco real existe, fugindo tanto da visão otimista do governo, quanto da análise muito negativa de empresários. A opinião pública tem sido bombardeada por análises que sustentam pontos opostos.
A ministra Dilma Rousseff disse, em novembro do ano passado, que “nem que a vaca tussa haverá risco de apagão”; em agosto, o ministro Silas Rondeau havia dito que “só um crescimento maluco” produziria o problema.
Já a Fiesp avaliou que, se o país crescer de 4% a 5% nos próximos anos, faltará energia. Um estudo do Ministério da Fazenda falava da preocupação com déficit. Rondeau, ontem, admitiu até que o governo poderá acionar um plano de contingenciamento de gás na próxima semana caso não se resolva o problema na Bolívia. De início, o plano pouparia consumidores residenciais e industriais.
A Petrobras vinha dizendo que a Bolívia não interromperia o fornecimento de gás, pois o país vizinho seria o maior prejudicado. Porém ontem os bolivianos tiveram que fechar já parte das torneiras — embora não tenham cortado o fornecimento para os contratos com a Petrobras. O que acontece é que os movimentos sociais que estão protestando agora não são controlados pelo presidente Evo Morales, nem parecem ter muito claro o que perderiam caso a estatal brasileira saísse de lá.
Mesmo em condições normais, em que nada disso estivesse acontecendo, existe risco de déficit de energia mais cedo que o governo admite. “Os resultados, no caso do cenário de referência, são de que o risco de racionamento a partir de 2010 é relativamente elevado; para os demais casos, os problemas de suprimento começariam em 2009”, diz o estudo.
O cenário de referência de que fala é o de que a demanda aumente, mas a nova oferta aconteça dentro do previsto. O principal risco de suprimento viria da falta das usinas termelétricas a gás. O país seria então suprido — explica Veiga — pela utilização mais intensa dos reservatórios.
As chuvas abundantes dos últimos anos encheram os reservatórios, e o país formou uma espécie de “poupança energética”. O problema é que essa utilização mais intensa levará à redução da capacidade até 2009 ou 2010. Caso ocorram outros cenários — como o de demanda crescendo ainda mais, ou de não se concretizar a oferta programada de energia, ou ambos, no cenário que ele chama de “estresse” — os problemas poderão ser antecipados.
Para quem acha que está tudo bem porque 2009 está longe, é bom lembrar que, em energia, tudo tem que ser programado com bastante antecedência. Levamse quatro anos para fazer uma hidrelétrica. As usinas do Rio Madeira são bem mais complicadas que parece: além do impacto ambiental ainda não dimensionado, que foi comentado ontem pela ministra Marina Silva, elas estão muito longe dos centros consumidores.
Mário Veiga acredita que o governo tem um bom leque de opções para evitar o racionamento, mas é preciso ter consciência dos riscos para preveni-los. O Brasil tem uma capacidade instalada de geração de 100 mil MW para uma demanda de 62 mil MW.
“Mesmo subtraindo-se toda a capacidade de geração das termelétricas, 7 mil MW, ainda sobrariam 31 mil MW, que seriam mais que suficientes para atender à demanda nos próximos anos. Neste caso, por que há preocupação com o suprimento de energia?”, pergunta-se.
Ele explica que o raciocínio estaria correto se toda essa energia fosse “firme”, ou seja, produzida por termelétricas, por exemplo. Mas, como 85% da oferta de energia brasileira dependem das condições hidrológicas, o risco de a vaca tossir é maior. Uma termelétrica de 1.000 MW, supondose, claro, que haja gás, tem uma energia “firme” de 900 MW, mas, numa hidrelétrica, isso cai para 550 MW.
A energia firme de 2007 é de 55 mil MW, superior à demanda de 51 mil MW. Mas, se quase não houve investimento nos últimos anos, de onde vem esse excesso de oferta? Veio da redução permanente do consumo de quase 7 mil MW desde o racionamento de 2001.
Veiga mostra que, mesmo nos estudos oficiais, há diferenças, pois o governo estaria usando “termômetros” distintos. A EPE concluiu que o risco de déficit para os próximos anos está dentro do limite considerado aceitável; abaixo de 5%. O ONS acha que o risco está acima de 5% em todos os anos, e que, em 2010, chega a 10%. Um dos desafios é escolher o critério correto de estimar a escassez; o outro é saber quando e de que maneira racionar, ensina Mário Veiga.
Nos cenários do estudo, os riscos de se decretar racionamento no Sudeste oscilam entre 8% e 23,5% em 2010 e entre 14% e 30% em 2011. Mesmo assim, Veiga diz que “não há razão para alarme”, porque ainda há tempo de ações preventivas. Uma das medidas mais importantes seria — vejam só — “normalizar o abastecimento de gás”, mas com o aumento da produção nacional e a importação de GNL. A outra, a realização dos leilões de energia alternativa a partir deste ano. Veiga sugere também que o governo unifique critérios e medidas para falar a mesma linguagem e, assim, dar mais segurança aos consumidores e empresas.
Entrevista:O Estado inteligente
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