DANIEL PIZA, daniel.piza@grupoestado.com.br Site:
Quando se fala em livros que podem mudar a vida de uma pessoa, muitas vezes se cria uma expectativa errada, como se fosse uma mudança da noite para o dia, redentora, prática ou o que seja. Não é por aí. Mas todo mundo que já leu bastante sabe que, entre os livros preferidos, para além dos consagrados, há aqueles que são especialmente queridos, íntimos, feito o filho favorito que a mãe finge tratar igual aos demais; são livros que foram lidos no momento certo, para as dúvidas certas, e ficaram na memória como aquela canção de namoro ou aquela comida da infância. Uma boa antologia de poemas de Emily Dickinson (1830-86), independentemente de estar no “cânone” da crítica, certamente é desses livros que podem, se não mudar, marcar uma vida. Ela marcou a minha; em meio a uma formação tão determinada por autores assertivos, quase peremptórios, foi tanto um contraponto quanto um novo impulso.
Acaba de sair no Brasil uma antologia dessas, Alguns Poemas, com tradução de José Lira (editora Iluminuras). Dickinson está em alta no mundo todo. Como no Brasil, tem ganhado novas traduções ano a ano. Nos EUA é cada vez mais estudada e celebrada. A modelo e cantora Carla Bruni, em seu CD mais recente, No Promises, interpreta poemas musicados de vários autores, como Yeats, Auden e Dorothy Parker, e é de Emily Dickinson o maior número (são três: I Felt My Life with Both My Hands, If You Were Coming in the Fall e I Went to Heaven). Mas nem sempre foi assim. Como Kafka ou Van Gogh, ela só foi descoberta depois de morta, graças aos esforços da irmã, e ainda assim demorou um tempo para que se assimilasse sua voz diferente, cheia de pausas e assimetrias, capaz de negar nossas ilusões mais baratas e ao mesmo tempo nos injetar uma vontade de viver. Deve ser por isso que soa tão atual, tão na moda.
José Lira obtém muitos achados, mas não vou comentar as traduções; como a edição é bilíngüe, o ideal é tentar ler no original e usá-las como apoio. Também não vou me estender sobre o CD da bela e corajosa Bruni, que tentou enfiar poemas tão distintos na mesma moldura folk. Dickinson é intransponível. E é para transportar na bolsa, para ler antes de dormir, para deixar a gente pensando durante dias com apenas meia dúzia de linhas. “Parting is all we know of Heaven/ And all we need of Hell” é seu dístico mais famoso. Lira traduziu “parting” por “partir”, embora seja “despedir-se”, separar-se do mundo - como, não à toa, fez a própria Emily, que vivia sozinha em sua casa na cidadezinha de Amherst, perto de Boston, reclusa em seus últimos 25 anos e com apenas dez poemas publicados. A irmã, Lavinia, achou os cadernos numa gaveta do quarto, depois de sua morte. Ela tinha escrito quase 1.800 poemas, com tudo que sabia do paraíso e tudo que precisava do inferno.
Dona de uma sensibilidade de Jane Austen e um intelecto de Wittgenstein, ela não se encaixa em nenhuma de nossas etiquetas prontas, do tipo “otimista” ou “pessimista”. Quando lemos “That it will never come again/ Is what makes life so sweet” (“Que nunca mais virá de novo/ É o que faz doce a vida”, na versão de Lira, que perdeu a ênfase do “tão doce”), somos obrigados a pensar fora dessas categorias. Ou “To be alive - is Power/ Existence - in itself -/ Without a further function -/ Omnipotence - Enough -” (“Estar viva - é Poder -/ A Existência - em si própria -/ Já é suficiente Onipotência -/ Sem outro requisito”). Ao mesmo tempo sentimos uma leveza, o alívio de pensar “Caramba, estar vivo, existir, é tudo”, e lamentamos que seja preciso sempre atrelar uma função, uma necessidade de mensagens de fé e esperança... Nunca ninguém falou tanto em morte, “finitude”, sem medo nem credulidade.
Mas não são apenas as idéias, os aforismos. É a capacidade de usar palavras como “ablative” ou “obloquy” em meio a frases correntes. É a repetição do recurso da disjunção, esses tracinhos que não devem ser lidos como travessões, apenas como pausas, como silêncios que falam. É o detalhe da seda e do tule irrompendo na descrição do famoso poema que se inicia com “Because I could not stop for death”. É a pintura - no poema I Died for Beauty - da beleza e da verdade unidas, mas sob túmulos contíguos, cobertos pelo mesmo musgo, como Keats ouvindo da urna grega. É a freqüência da palavra “dew”, orvalho, melhor símbolo de seu mundo - uma lágrima decantada pronta sempre à renovação, no intervalo entre conhecimento e necessidade. É, enfim, todo esse sofisticado despojamento que fica no leitor depois que o livro fica na estante.
RODAPÉ (1)
Dickinson está incluída no livro O Mundo como uma Frase, de James Geary (Objetiva), que se diz “uma breve história do aforismo”. Mas não vale a pena ler, porque não vai além dos miniperfis de frasistas manjados (não tanto o caso dela), salvo pela definição dos atributos de um aforismo: breve, definitivo, pessoal, surpreendente e filosófico.
RODAPÉ (2)
Dois livros que já comentei aqui e incluí em listas de melhores do ano, a biografia Goya, de Robert Hughes, e as reportagens sobre o 11/9 de O Vulto das Torres, de Lawrence Wright, estão traduzidos no Brasil. Quem se interessa pelos assuntos vai se deliciar com informações e interpretações de primeira.
CADERNOS DO CINEMA
Vale a pena ver o documentário Cartola, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda. Há uma diferença de ritmos na narrativa - muito saturada e acelerada na primeira metade -, faltam legendas e não dá para entender direito a razão de algumas imagens repetidas, como a das gambiarras (sinal do descaso público? a dificuldade de comunicação atual? contraponto à alegria verde-rosa das bandeirinhas da Mangueira?). Mas o saldo é bom porque as imagens escolhidas para cada época podem ser surpreendentes e o esquema depoimento com ilustração é driblado; mais importante, sentimos o sofrimento de Cartola, a dificuldade de ser reconhecido e pago como artista, seu extraordinário dom poético e melódico. E pelo menos três de suas maiores canções - O Mundo É um Moinho, Acontece e As Rosas não Falam - podemos escutar inteiras. Na primeira, em interpretação dele para seu pai, que emociona a qualquer um, note que diz [O MUNDO]“o mundo é um moinho/ Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho” e não, como se canta habitualmente, “tão mesquinhos” - o mundo é que mesquinho, não os sonhos. Seguramente não os de Cartola.[/O MUNDO]
DE LA MUSIQUE
Descafeinada é tudo que Amy Winehouse não é. A cantora e compositora abre seu CD, Back to Black, com uma pegada e um vozeirão que não perdem o pique até a última faixa. Sem o jeito postiço de Joss Stone, ela faz pensar em Aretha Franklin, Diana Washington, Etta James, em divas do soul - e a elas acrescenta uma ousadia bem contemporânea, com versos como “You know I’m no good”, título da ótima segunda faixa. Depois algumas canções soam repetitivas, com exceção da balada Love Is a Losing Game, mas, no conjunto, ela é excelente antídoto ao bom-mocismo.
UMA LÁGRIMA
David Halberstam, que morreu na segunda em acidente de carro, era um jornalista-ensaísta muito interessante; infelizmente, não foi traduzido no Brasil. Ganhou o Pulitzer e publicou muitos livros sobre a Era Kennedy e a Guerra do Vietnã. Escrevia sobre literatura, política, esportes, comportamento. Gosto de The Fifties, um cartapácio sobre a década de 50 nos EUA, única em sua vitalidade cultural e contradições políticas.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
“Existe finalmente um centro na França. Um centro amplo, um centro forte, um centro independente, capaz de falar e agir além das fronteiras de outrora. Esses milhões de franceses (os 7 milhões que votaram nele) compreenderam que a velha guerra de dois campos não respondia mais ao mal da França. Eu digo que o mal da França é mais grave do que a descrença nos dois partidos que ainda nesta noite chegaram ao topo.” Assim disse François Bayrou quando se divulgou o resultado do primeiro turno das eleições francesas. Os dois vencedores, Ségolène Royal e Nicolas Sarkozy, também cederam ao centro, caso contrário não venceriam. Mas é o caso de perguntar: por que não existe finalmente um centro no Brasil? Será porque aqui tudo que chega ao centro tende a morrer?
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Reeleição existe em muitos países. O que não existe em muitos desses países é um sistema com dezenas de partidos sem fidelidade nem representatividade, para não falar da impunidade causada, entre outros motivos, pela falta de critério técnico nos tribunais de contas. Mas que Lula, depois de reeleito, se diga contra - como havia sido em 1997 - é hilário.
Só não é tão hilário quanto Roberto Mangabeira Unger, mais Mangabeira do que Unger, aceitando cargo no governo que disse ser o mais corrupto da história, levando ao cume a moda do “esqueçam o que escrevi” (no caso de Lula, “esqueçam o que discursei”). Intelectual brasileiro quer mesmo é aderir ao poder.
Aforismos sem juízo
A curiosidade antecede a vaidade.
'Uma boa antologia de poemas de Dickinson pode, se
não mudar, ao menos marcar uma vida'
'Mangabeira Unger no governo é hilário. Intelectual brasileiro quer mesmo é aderir ao poder'