Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 21, 2007

Iraque Atentado deixa cerca de 200 mortos

Beco sem saída

Atentados expõem a falência do estado
iraquiano e a impotência americana


Denise Dweck

Ali Al Saadi/AFP
Ataque a bomba em Bagdá: duas centenas de mortos em quatro ataques contra xiitas

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Perguntas e Respostas: Luta sectária

Sempre que surge uma luz no fim do túnel, novas matanças sepultam qualquer esperança de estabilidade no Iraque. Na quarta-feira passada, quatro carros-bomba mataram cerca de 200 pessoas em Bagdá. Em um dos atentados, num mercado de Sadriya, bairro de população xiita e curda, morreram 140 pessoas, no pior ataque com uma única bomba desde a invasão americana, em 2003. A série de atentados violentos colocou em xeque o plano de segurança dos Estados Unidos para a capital iraquiana. Desde fevereiro, reforços americanos tentam limpar os bairros de milícias e insurgentes. Para os americanos, o plano já apresenta resultados positivos em reduzir o número de sunitas assassinados. O saldo parecia tão bom que o primeiro-ministro Nuri al-Maliki anunciou que os iraquianos iriam assumir as operações de segurança do país até o fim do ano. Ironicamente, o anúncio foi feito horas antes das grandes explosões de quarta-feira.

A escalada de ataques da semana passada não revela apenas uma falha na estratégia americana. Expõe um problema maior: a falência do estado iraquiano. "A invasão americana desmantelou as instituições do país, como o Exército, que era o único com autoridade de alcance nacional, e o partido Baath, que tinha a memória administrativa", diz o americano Mark Danner, autor do livro O Caminho Secreto para a Guerra, sobre o conflito no Iraque. Com eleições e acordos entre facções rivais, os americanos tentaram dar um governo legítimo ao país. Não funcionou. Grupos étnicos, religiosos, tribais e políticos aproveitaram o colapso estatal para uma sangrenta disputa de poder.

Kent Porter/AP
Enterro de soldado americano: sem um plano de retirada

Para que o Iraque volte a ter estabilidade, a solução, diz Toby Dodge, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, é o estado iraquiano recuperar sua autoridade. Fácil de dizer, difícil de fazer. As milícias xiitas e seus inimigos, os insurgentes sunitas e os terroristas da Al Qaeda, ignoram a tênue autoridade do governo iraquiano, que depende dos americanos para existir. Washington parece não ter idéia de como resolver o impasse. "Um primeiro passo seria ter forças policiais mais competentes e em número razoável", sugere Richard Stoll, da Universidade Rice, no Texas. Para Stoll, os soldados iraquianos precisam entender que sua missão é defender todos os iraquianos, e não se misturar às milícias. "Só com a eliminação das milícias ou o seu desgaste é que se vai conseguir fazer acordos para iniciar o processo de reconstrução do Iraque", diz John Mueller, professor de ciência política da Universidade de Ohio. A idéia de dividir o país em áreas autônomas para cada uma das três principais etnias (xiitas, sunitas e curdos) voltou à mesa de debate, mas há um enorme entrave: o petróleo. As reservas estão concentradas nas áreas de predominância xiita e curda. Seria necessário dividir a receita petrolífera de forma igualitária. Isso só seria conseguido com um longo processo de reconciliação, o que depende de confiança e segurança. Duas palavras que ainda não se ouvem no Iraque.

Perguntas & Respostas

Março de 2007
Luta sectária no Iraque



Há pouco mais de um ano, um atentado terrorista mudava a história do Iraque. Ao contrário das explosões que acontecem quase todos os dias no país, essa não matou nem feriu ninguém. Deu início, contudo, a uma violenta disputa entre os principais grupos religiosos do país - que agora está mergulhado no que muitos dizem ser uma verdadeira guerra civil. O brutal confronto entre xiitas e sunitas tem solução? Entenda o assunto:


1. Qual é a diferença entre muçulmanos xiitas e sunitas?
2. Qual foi o primeiro episódio de violência entre as facções?
3. Quem são os sunitas e xiitas hoje?
4. No que os xiitas e sunitas são iguais? No que diferem?
5. Qual é a origem da atual disputa entre as facções no Iraque?
6. Xiitas e sunitas estão em conflito desde o início da guerra?
7. Qual foi o grande estopim do conflito?
8. O que aconteceu desde então?
9. O que está em jogo na luta sectária no país?
10. Há perspectiva de resolução do conflito iraquiano?
11. Como é a relação entre os grupos nos outros países?

1. Qual é a diferença entre muçulmanos xiitas e sunitas?

Xiitas e sunitas integram os dois principais grupos do Islã. A divisão entre eles surgiu no ano de 632, logo depois da morte de Maomé, e tem origem na disputa pelo título de "califa", ou líder máximo da nação muçulmana. Os seguidores se dividiram entre o primo de Maomé, Ali ibn Abi Talib, e um amigo do profeta, Abu Bakr - que acabou se tornando o califa, por ter apoio da maioria. Anos depois, Ali ainda se tornaria o califa, antes de ser assassinado perto de Kufa, no atual Iraque, em 661. A nova disputa pela sucessão marcou a divisão formal entre os grupos.

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2. Qual foi o primeiro episódio de violência entre as facções?

Os xiitas (palavra surgida do termo shi'at Ali, ou "seguidores de Ali"), defendiam que o filho do califa morto, Hussein, assumisse. Os sunitas (termo proveniente de sunnah, "tradição", referência ao chamado "caminho do profeta") defendiam a posse de Mu'awiyah, então governador da Síria. Os grupos se enfrentaram numa batalha ocorrida perto da atual cidade iraquiana de Karbala. Em 10 de outubro de 680, Hussein foi decapitado pelos rivais. Sua morte, porém, não acabou com o movimento xiita. Pelo contrário: seu martírio o transformou num símbolo de resistência aos opressores, atraindo mais seguidores ao grupo.

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3. Quem são os sunitas e xiitas hoje?

Os sunitas se consideram o ramo ortodoxo do Islã. Formam o grupo majoritário: entre 85% e 90% dos muçulmanos do mundo são sunitas. Eles veneram todos os profetas mencionados no Corão, mas Maomé é sempre a figura central. Já os xiitas somam cerca de 170 milhões de seguidores e são maioria no Irã, Iraque, Bahrein e Iêmen. Têm grandes comunidades também no Afeganistão, Índia, Paquistão, Azerbaijão, Índia, Kuwait, Líbano, Catar, Síria, Turquia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Sua fé tem um forte elemento messiânico e seus clérigos praticam uma interpretação independente e mutável dos textos islâmicos.

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4. No que os xiitas e sunitas são iguais? No que diferem?

Além da crença no mesmo deus, sunitas e xiitas compartilham vários elementos comuns, como vestuário e culinária. As diferenças, porém, são numerosas, e variam de região para região. Os xiitas, por exemplo, têm tradição de independência de seus líderes religiosos em relação às autoridades políticas. Já os sunitas submetem suas lideranças e escolas de religião ao controle estatal. No Iraque, os dois grupos diferem em vários aspectos do cotidiano. Suas mesquitas têm características distintas, assim como suas orações. Decorações nas casas e até adesivos colados nos carros diferenciam fiéis dos dois grupos.

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5. Qual é a origem da atual disputa entre as facções no Iraque?

A luta sectária iraquiana tem raízes muito profundas e antigas. A divisão entre os grupos é alimentada por séculos de desigualdade social, política e econômica, pela dura repressão contra os rivais, por numerosos casos de violência. Mas o quadro caótico do Iraque no pós-guerra foi perfeito para detonar a guerra. Há o forte desejo de vingar os crimes do tirano Saddam Hussein, um sunita; os freqüentes atentados terroristas praticados pelos seguidores do ex-ditador; as retaliações violentas dos integrantes da milícia xiita do clérigo radical Moqtada Al Sadr; a interferência dos vizinhos xiitas do Irã.

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6. Xiitas e sunitas estão em conflito desde o início da guerra?

Não. Apesar das divisões e rivalidades, o país tinha enormes comunidades mistas, onde sunitas e xiitas conviviam de forma pacífica. Os radicais de ambos os lados já se enfrentavam, mas a população em geral não participava dessa guerra sectária. Um grande exemplo disso foi a tragédia da morte dos fiéis xiitas numa peregrinação em 31 de agosto de 2005, em Bagdá. Centenas deles caíram ou pularam no riuo Tigre depois de uma grande confusão perto de uma mesquita. Quase 1.000 peregrinos morreram, mas os sunitas que moravam às margens do rio arriscaram suas vidas para salvar os outros fiéis.

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7. Qual foi o grande estopim do conflito?

O atentado contra a mesquita xiita de Al Askari, em Samarra, em 22 de fevereiro de 2006. A explosão, provocada por terroristas sunitas ligados à rede Al Qaeda, não feriu nem matou ninguém. Mas a cúpula dourada do templo, um dos locais mais sagrados para os xiitas em todo o mundo, foi destruída. Nos dias seguintes ao ataque, várias mesquitas sunitas foram atacadas e centenas de corpos foram encontrados nas ruas. Os tiroteios e atentados entre os grupos tornaram-se freqüentes. Líderes políticos e religiosos de ambos os grupos defenderam a reconciliação entre xiitas e sunitas, mas isso nunca ocorreu.

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8. O que aconteceu desde então?

A escalada de ódio entre os grupos continuou. Um ano depois do atentado, o número de mesquitas sunitas atacadas pelos xiitas chegava a 168. Dez líderes religiosos foram mortos e quinze foram seqüestrados. Esquadrões de extermínio mataram várias centenas de pessoas - tornou-se comum a polícia encontrar pilhas de cadáveres nos bairros sunitas e xiitas. Para muitos especialistas, a situação constitui um quadro de guerra civil - o que os americanos negam. Apesar das promessas dos líderes iraquianos, a mesquita de Samarra ainda não foi reconstruída.

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9. O que está em jogo na luta sectária no país?

A divisão dos grupos pode ser religiosa, mas o objetivo final é essencialmente político. Tanto xiitas como sunitas tentam conquistar o poder no pós-guerra iraquiano - para o primeiro grupo, a luta é por controlar o país e vingar as perseguições do regime de Saddam Hussein; para a segunda facção, a meta é retomar o controle e impedir que a ocupação americana reduza a influência sunita. O conflito também pode repercutir nos outros países do Oriente Médio. Isso explica as tentativas do Irã, um regime radical xiita, de interferir no conflito e tentar reproduzir a revolução de 1979 no país vizinho.

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10. Há perspectiva de resolução do conflito iraquiano?

Não, pelo menos por enquanto. A brutalidade do choque sectário contaminou não só os radicais de ambos os lados, mas também as pessoas comuns - vítimas, parentes e testemunhas das carnificinas diárias ocorridas no país. Além disso, a rivalidade cada vez mais acirrada se reflete também nas autoridades xiitas e sunitas que fazem parte do governo e do congresso. A relação entre as duas comunidades mudou completamente, e poucos acreditam que esse quadro mudará nos próximos anos, mesmo que os americanos consigam reduzir a violência e avançar a reconstrução.

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11. Como é a relação entre os grupos nos outros países?

Em algumas nações muçulmanas, os xiitas e sunitas vivem totalmente segregados - em muitos locais não há casamentos entre seguidores dos dois grupos, como ocorria freqüentemente até pouco tempo atrás no Iraque. Em muitos países com grandes comunidades xiitas, esse grupo forma a população mais pobre, e se considera a parcela mais oprimida e discriminada da sociedade. Em algumas nações com maioria sunita conservadora, o ódio aos xiitas é defendido abertamente. O Paquistão tem um longo histórico de confronto entre os grupos. No Líbano a convivência também é complicada, em função das atividades do grupo radical xiita Hezbollah.


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