Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, abril 05, 2007

Quando T. Mulholland gritou fogo- DEMÉTRIO MAGNOLI



Artigo -
O Globo
5/4/2007

Timothy, que não é Leary, viaja sem o auxílio de aditivos químicos. Na madrugada de 28 de março, alguém usou álcool para incendiar a porta dos apartamentos de dez estudantes africanos, na Universidade de Brasília (UnB). As vítimas escaparam pela janela. No mesmo dia, antes que as superfícies calcinadas esfriassem, o reitor Timothy Mulholland extraiu conclusões definitivas: "A democracia sofreu um atentado. O Brasil é um país racista, e a UnB é uma universidade de alma racista." Homem de ação, tanto quanto de palavras, Mulholland crismou a data como "Dia da Igualdade Racial" na universidade.

Mesmo o exagero tem limites. Seria o crime supostamente cometido por alguns supremacistas brancos a prova cabal de que a nação sucumbiu ao racismo? É razoável atribuir à UnB, como instituição e comunidade acadêmica, a culpa coletiva pelo feito ignóbil de um hipotético fanático da "raça"?

Mulholland gritou fogo quando uma declaração da ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas para Promoção da Igualdade Racial (Seppir), incendiava os espíritos. Ela interpretou como "natural" o preconceito de "negros" contra "brancos", que, no fundo, não seria preconceito algum, mas apenas um bem-fundamentado conceito sobre a história: "Aqueles que foram açoitados não têm obrigação de gostar de quem os açoitou." Em nome do Estado, a ministra disse que:

1. A nação se divide em "brancos" e "negros";

2. Os "brancos" representam no presente os proprietários de escravos do passado;

3. Os "negros" representam no presente os escravos do passado;

4. A culpa coletiva e a histórica dos "brancos" conferem legitimidade à desforra dos "negros".

Matilde Ribeiro desafia a ciência e se insurge contra o princípio da cidadania. A ancestralidade genética não encontra expressão nos fenótipos "raciais". Anote, ministra: existem "brancos" que descendem de escravos e seus antepassados podem ter sido "açoitados" por "negros" descendentes de proprietários de escravos.

No pensamento moderno, as pessoas se definem pelas suas potencialidades, ou seja, pelo seu presente, não pela descendência ou linhagem de sangue, ou seja, pelo passado. Ninguém é culpado por atos de seus antepassados diretos, muito menos pelos de imaginários antepassados "raciais". É por isso que os conceitos de cidadania e raça são mutuamente excludentes.

O reitor gritou fogo, antes ainda do início das investigações policiais, para fornecer sustentação "empírica" aos argumentos "teóricos" da ministra. Ambos estão engajados num empreendimento de engenharia social cujo fim é a reinvenção do Brasil.

Na Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios de 1976, milhões de brasileiros produziram 136 respostas inesperadas para o quesito cor/raça. Os "acastanhados", "bronzeados", "moreninhos", "queimados-de-sol", "sararás" e dezenas de et ceteras somaram mais de dois quintos da população, que não se reconheciam nas cinco categorias censitárias do IBGE. A prova de que a "raça" não deitou raízes fundas no Brasil foi interpretada como "falsa consciência" pelos agentes do pensamento racialista, articulados internacionalmente e financiados pela Fundação Ford. Eles iniciaram ali uma jornada de retificação das mentes, com a finalidade de fabricar as duas raças polares na consciência das pessoas. A Seppir, as cotas, o Estatuto Racial e o grito de "fogo!" de Mulholland são instrumentos a serviço desse programa.

A classificação legal e compulsória de raças, complementada pela promessa de cotas para "negros" na universidade, no serviço público e no mercado de trabalho, destina-se a fabricar nas estatísticas uma "raça negra", convertendo os "impuros" à declaração racial "correta". A difusão oficial do discurso do "orgulho de raça", apoiado nos pilares paralelos da vitimização e da redenção, destina-se a fabricar nas mentes a "raça negra": os "negros" consagram a sua "negritude" quando aprendem a identificar nos "brancos" os opressores.

Dias depois do incêndio criminoso na UnB, a polícia começou a desvendar uma trama de rixas banais no alojamento universitário. Entre os suspeitos apontados pelas vítimas há um estudante que se descreve como "negro" e outro identificado como "pardo". Os policiais, aparentemente, afastaram a hipótese de atentado de cunho racista. As suas conclusões serão impressas, cedo ou tarde, numa página interna dos jornais. No registro histórico, porém, já ficou impressa a versão do reitor, que conta com as vantagens do selo oficial, da precedência temporal e da perenidade solene de uma nova data de memória. Timothy, que não é Leary, viaja com um galão cheio de álcool inflamável e um estoque de caixas de fósforo.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. E-mail: magnoli@ajato.com.br

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