Sociedade antecipa em dois anos a discussão sobre as eleições e o futuro
Desde 2003, como professor da Universidade de Brown, passei pelo menos quatro semanas, todos os anos, em Providence, nos Estados Unidos. Em geral no período de outubro e novembro, coincidindo, portanto, com a data das eleições americanas. Desta vez, posterguei a estada para os frios meses de fevereiro e março, perdendo o belo outono da Nova Inglaterra. Não perdi, contudo, a oportunidade de ver algo inesperado, o início das pré-campanhas eleitorais. Elas começaram dois anos antes do fim do mandato presidencial. A comunicação em tempo real, a sofreguidão em antecipar o futuro e a fraqueza de um governo perdido na neblina de uma guerra prolongada e impopular aumentaram a ansiedade por novos caminhos.
Os primeiros movimentos eleitorais mostram que os mecanismos da democracia não perderam vitalidade. Entre os democratas, que na Nova Inglaterra são predominantes, há um quase frisson. Quem quebrará melhor a rigidez fundamentalista dos últimos anos? Barak Obama? Hillary Clinton? O governador Bill Richardson ou a volta repentina de Al Gore, renovado pela energia que brotou do sucesso de seu filme? Visto pelo prisma desses dias, Obama surge como um rojão.
Senador de primeiro mandato, que desde jovem se envolveu nas lutas contra a pobreza e pelas boas causas, vem arrastando apoios inesperados. Surpreendeu-me ver tantas pessoas na universidade, especialmente mulheres, opinarem que talvez seja ele a chave, senão da vitória, da virada anticonservadora.
Para cada um dos candidatos há uma ou várias objeções.
Será que o grosso do eleitorado está preparado para votar em um afro-americano? E, afinal de contas, dirão os numerosos negros favoráveis aos Clinton, ele, filho de um diplomata de Gana e de mãe americana branca, não tem um passado de escravidão. Tampouco tem idade para ter participado das lutas pelos direitos civis dos anos sessenta e setenta. Para explicar seu inesperado apoio entre os brancos, os descrentes dirão que manifestar-se dois anos antes das eleições por um candidato negro é como procurar um atestado de boa conduta racial; votar nele no dia das eleições são outros quinhentos.
Quem hoje se dispõe a votar em Obama, amanhã poderá votar em Hillary.
Senadora por Nova York (que não é sua terra), Hillary, que tem talento, coragem e decisão, talvez possa reagrupar mais facilmente o eleitorado ávido por mudança. Já os mais céticos ponderam que Hillary é demasiado calculista, racional, ou seja, o que é visto como predicado positivo para um homem passa a ser duvidoso para uma mulher (não estamos, portanto, tão isentos assim em matéria de preconceitos...). Já em si é notável que os dois vanguardistas das pesquisas eleitorais sejam uma mulher e um negro. Quem sabe os dois juntos? Ah! Assim também seria demais, dizem os cautos, e facilitaria a maioria silenciosa despejar seus temores no ticket republicano.
Nesse panorama, quem sabe um “novo” como Bill Richardson, governador do Novo México. Experiente, ex-ministro de energia, ex-embaixador na ONU, conhecedor da política internacional e sempre com posições muito abertas. Além do mais hispano pelo lado da mãe, fluente em espanhol.
Contra ele contam a pouca centralidade política de seu estado, estar atrás nas pesquisas e, quem sabe, não conseguir juntar tanto apoio financeiro como seus concorrentes.
Neste caso, há a possibilidade de buscar outro antigo-renovado, Gore.
Com fama de inteligente e de distante, não de ser calculista, mas de ser amarrado no lidar com as pessoas, há quem não o veja como candidato, embora as objeções tivessem ficado menores depois do filme “Uma verdade inconveniente”.
E ainda há o senador Edwards, que, derrotado na tentativa anterior, ainda está no banco de reserva.
Enfim, candidatos não faltam. Com restrições ou não, o plantel democrata está, como o do PSDB, regurgitando de candidatos. Há que decidir a tempo, antes que o adversário acorde.
No outro campo, os dois principais candidatos, Giuliani e McCain, representam o oposto do fundamentalismo vigente.
Fica a dúvida sobre em quem votará o eleitorado republicano tradicional. Será que já é tempo para largar o barco conservador? Giuliani assume todas as bandeiras progressistas, do casamento gay à simpatia para com os imigrantes. E McCain, senador sensato, liberal-conservador, paga o preço de um voto pró-guerra do Iraque no momento em que os americanos choram as perdas de seus soldados e se desesperam com a falta de saída a que foram levados na ânsia de impor seu modelo político ao mundo árabe.
Em suma, apesar dos pesares, vê-se uma sociedade discutindo o futuro. Curiosa essa democracia americana. Os dois gigantes do pensamento político do século dezenove, Marx e Tocqueville, cada um à sua maneira, se encantaram com ela.
Encantaram-se com o sentido de responsabilidade individual que o protestantismo lhe dava, dando ao mesmo tempo às pessoas um certo gosto pela ação comunitária.Viram nascer na América uma coesão que não se baseava nas ordenações hierárquicas da velha Europa, mas na adesão aos valores do que hoje chamaríamos de uma sociedade aberta.
Em segmentos importantes da América atual continua havendo apego às convicções e à capacidade de reconhecer o erro e voltar atrás. A escolha dos candidatos passa por esta discussão, ainda que inconscientemente.
Ao mesmo tempo, o gigantismo da América das corporações e a crença em verdades absolutas assustam. Basta ler o “Wall Street Journal” do dia 21 de março, que reproduz as brigas intestinas entre a família proprietária do “New York Times”, ciosa da tradição da liberdade de imprensa, com um ou dois grupos de investidores financeiros que desejam forçar a porta de entrada para controlar o velho jornal. Democracia a perigo? Não sei. Já há big corporations descrentes da ação governamental falando e agindo como se fossem corporate citizens, assumindo posições responsáveis, por exemplo, na questão do meio ambiente.
Essa contradição entre uma América desejosa de continuar o legado dos fundadores da Pátria, mantendo o modelo de sociedade livre, aberta e com mobilidade social, e a realidade de um gigante econômico-financeiro e militar que atazana boa parte do mundo, está por trás da briga eleitoral. Veremos no que vai dar.
Entrevista:O Estado inteligente
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