Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 01, 2007

FERREIRA GULLAR A orelha de Van Gogh


Devorei "Van Gogh, Le Suicidé de la Société" com avidez, mas tive a má idéia de emprestá-lo

A REVISTA do IAPC, que funcionava numa sala da rua Alcino Guanabara, era o que se podia chamar de um cabide de empregos.
Ali ganhavam, sem trabalhar, vários escritores, entre os quais eu, o único que dava expediente integral na Redação. Não é que houvesse muita coisa a fazer. Eu é que, residindo não num quarto, mas numa vaga, perto da praça da Cruz Vermelha, não tinha onde escrever. Ali, na Redação, dispunha de telefone, uma máquina de escrever e silêncio para elaborar meus poemas, além de textos em prosa, tão estranhos que os guardo até hoje sem publicar. Certa vez, interrompi a elaboração de um deles para ir almoçar, deixando-o na máquina de escrever. Ao voltar, alguém havia acrescentado a ele algumas frases, tornando-o ainda mais extravagante. Aceitei a colaboração (que, soube depois, era de Lúcio Cardoso) e o continuei.
Além de Lúcio, também pertencia à Redação da revista o contista Breno Accioly, que andava sempre de chapéu e capa de chuva, chovesse ou não, e entrou em conflito com Otto Lara Resende, que, na época, dirigia o suplemento literário "Letras & Artes". É que Breno o procurara levando-lhe vários contos para que os publicasse e, como Otto só publicou um deles, tomou-o como inimigo e passou a ameaçá-lo com um revólver. Ao assinar o livro de ponto, percebi que estava armado e ele, mastigando o charuto que sempre trazia na boca, falou:
-Isso é para ensinar uma lição a um cabra safado.
Breno era alagoano. Soube que, dias depois, ao cruzar a avenida Rio Branco, ao lado do Teatro Municipal, deparou com Otto, que vinha em sentido contrário.
-Otto Lara Resende, verme da terra!, gritou ele, sacando da arma.
Otto saiu correndo em disparada.
Dos escritores já famosos, o único a vagabundear comigo era Lúcio Cardoso, que se tornou meu amigo ao me ver lendo "Notre-Dame-des-Fleurs", de Jean Genet. Como meu salário de extra-numerário mensalista mal dava para pagar a vaga no quarto e comprar livros, almoçava no restaurante do SAPS (Serviço de Alimentação Popular), que ficava no subsolo da sede do IAPC, na rua México, 28. Lúcio passou a me acompanhar nesses almoços, se coincidia chegar nessa hora para assinar o ponto. O jantar é que era o problema, já que o SAPS fechava às 14 horas. As opções eram a sopa de entulho do restaurante Cayru, ali na rua Senador Dantas, ou o prato feito na Associação Cristã de Moços, isso quando sobrava grana depois dos cuba-libres que tomávamos no Vermelhinho, no final da tarde.
O Vermelhinho fervia de artistas e intelectuais, que por ali passavam após o expediente do dia. A maioria tomava um chope e ia embora, mas o nosso grupo, sem pai nem mãe, nem família, esticava em direção à Lapa. Eu, a última coisa que desejava era voltar para o quarto que dividia com dois irmãos do interior de Goiás. Passavam a noite inteira a conversar, a lembrar coisas de sua terra, especialmente as namoradas que tiveram. Eu, que já desistira de ler, metia-me sob o lençol e tapava os ouvidos. Quando finalmente dormiam, a coisa piorava porque os dois roncavam numa altura que fazia estremecer as paredes do quarto. Foi por isso que aceitei a proposta de Bastos para ir morar com ele e o Carlinhos Oliveira, na pensão de dona Hortência, na rua Buarque de Macedo, no Catete. Se não era nenhuma maravilha, pelo menos ali ninguém roncava; só o colchão da cama é que, de tão velho, parecia de pedra; era o mesmo que dormir em cima de uma mesa de necrotério.
Naquela época, descobrira Antonin Artaud, num exemplar da revista "Fontaine", que lia na Biblioteca Nacional. Passei a copiar-lhe os poemas a mão e depois datilografá-los. Punha-lhes uma capa vermelha, de cartolina, e dava-os aos amigos, em edições de três a cinco exemplares, devidamente numerados e assinados pelo datilógrafo.
Por acaso, encontrei, no fundo de uma prateleira da Livraria Francesa, um exemplar do texto de Artaud "Van Gogh, Le Suicidé de la Société". Devorei-o com avidez, mas tive a má idéia de emprestá-lo a Oliveira Bastos, que deu fim nele. Soube depois que o havia presenteado a Hélio Pellegrino, que me deu a notícia tecendo elogios à generosidade de Bastos. Bem, esta foi apenas uma das numerosas raridades que tive a burrice de emprestar a pessoas generosas (com os outros). Apesar disso, mantinha-me otimista e dizia aos amigos -admiradores, como eu, não só de Artaud e Van Gogh, mas também de outros malditos, como Rimbaud e Lautréamont-: "Não pensem que vou cortar a minha orelha". E mantive a palavra.

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