Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, janeiro 19, 2007

O Mercosul que se perdeu


editorial
O Estado de S. Paulo
19/1/2007

O Mercosul não pode ser apenas um projeto econômico, disseram ontem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o chanceler Celso Amorim, em mais um surto de fantasia geopolítica. Mas como pode ser mais que isso, se nem isso consegue ser? A reunião de cúpula iniciada ontem no Rio de Janeiro tornou mais visíveis as fraturas do bloco original, formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Mas essas fraturas não bastam para satisfazer a sede de fracasso. Incapaz de resolver seus impasses, o quarteto cometeu a imprudência, no ano passado, de aceitar como sócia a Venezuela do coronel Hugo Chávez. Um dos temas centrais da nova conferência, programada para encerrar-se hoje, é a admissão da Bolívia, liderada por Evo Morales, discípulo de Chávez e inimigo de quaisquer acordos comerciais com os mercados mais importantes. Com cinco sócios, o Mercosul é mais fraco do que era com quatro. Com seis, será ainda mais frágil, ou mais desconjuntado.

“É natural”, disse o chanceler Amorim, “que os mercocéticos ou mercocríticos se enfureçam cada vez que acontece algo como a adesão da Venezuela ao Mercosul, porque percebem que o bloco está-se fortalecendo.” Cometeu dois enganos graves nessas poucas palavras (provavelmente deliberados).

Os críticos da atual situação do Mercosul foram sempre favoráveis à formação do bloco e à integração de seus membros originais. Não descrêem das potencialidades do Mercosul. Condenam, simplesmente, os erros crassos cometidos nos últimos anos, desde quando os governos do Brasil e da Argentina decidiram minar a união aduaneira e dificultar os acordos com os principais parceiros. Em segundo lugar, falar em fortalecimento do bloco beira o delírio: com sócios como a Venezuela de Chávez e a Bolívia de Morales, o Mercosul apenas se torna balofo e mais se distancia de sua vocação original.

A tarefa urgente, neste momento, seria retomar o caminho da integração econômica, fortalecer a união aduaneira e buscar o caminho da inserção competitiva no mercado global. Enquanto o Mercosul se deixou enredar no protecionismo e nas briguinhas internas, outros países, conduzidos com maior sensatez, conquistaram preferências comerciais e tomaram fatias preciosas dos principais mercados. No bloco, só os governos dos sócios menores, Paraguai e Uruguai, parecem ter avaliado com algum realismo as oportunidades perdidas nos últimos anos.

“O Mercosul não é só um projeto economicista”, disse o chanceler Amorim numa entrevista à TV Globo. O adjetivo “economicista” revela um estranho preconceito, inadmissível num diplomata responsável pelas negociações comerciais do País. De fato, o bloco foi concebido com ambições amplas, mas não se faz uma associação política, social e cultural apenas com retórica. A integração econômica ainda é a base mais concreta e mais sólida para outras formas de aproximação entre os povos, mesmo vizinhos. A integração econômica entre Brasil e Argentina progrediu rapidamente durante alguns anos, impulsionada pelo comércio e pelo intercâmbio de investimentos. Hoje os vôos entre Buenos Aires e São Paulo constituem praticamente uma ponte aérea. Cursos de português e de espanhol multiplicaram-se na Argentina e no Brasil. Não são necessárias explicações muito sofisticadas para fenômenos como esses.

Mas a integração empacou. A união aduaneira tornou-se uma ficção legal. Em vez de atacar os problemas e de trabalhar pela formação de cadeias produtivas, para intensificar a interdependência, os governos do Brasil e da Argentina permitiram que os impasses se agravassem. Os sócios menores foram esquecidos, sem receber o apoio necessário para aproveitar mais amplamente as possibilidades do comércio e do investimento.

A Venezuela de Hugo Chávez nada agrega a esse conjunto, a não ser problemas. O caudilho já se manifestou contra a liberalização do comércio agrícola defendida pelos outros sócios, em rara unanimidade, na Rodada Doha. O ingresso da Bolívia de Evo Morales tornará mais difícil o consenso a respeito das questões internacionais de interesse concreto para Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Seria preciso, sim, voltar aos objetivos da integração econômica e buscar a solução para os impasses, porque só assim seria possível consolidar a base necessária a uma associação mais completa.

Seria. Mas, agora, ao que tudo indica, não será mais.

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