Ao sair às ruas para derrubar o governo
libanês, milícia xiita a serviço dos aiatolás do
Irã pode levar o Líbano a nova guerra civil
Denise Dweck
Fotos Mohammed Zaatari/AP, Benoit Tessier/Reuters | |
Militantes xiitas do Hezbollah nas barricadas nas ruas de Sidon, no sul do Líbano. Acima, o premiê Fouad Siniora, que estava em Paris negociando doações para a reconstrução do país |
O Líbano vive aquele momento inicial de uma disputa entre pesos-pesados. Os boxeadores se encaram no centro do ringue, na expectativa de quem tomará o primeiro golpe. De um lado, está o governo eleito, que representa, de acordo com a fórmula complexa estabelecida na Constituição, as múltiplas facções confessionais e étnicas do país. Do outro, a milícia xiita Hezbollah, uma força bem armada e disciplinada, que conta com o apoio do Irã e da Síria. O pano de fundo, que paira como uma sombra sobre o confronto, é se o país está ou não predestinado a mergulhar numa nova guerra civil, como aquela que durou de 1975 a 1990 e deixou 150.000 mortos. Na semana passada, o xeque Hassan Nasrallah, chefe do Hezbollah, convocou uma greve geral com o objetivo de depor o governo do primeiro-ministro Fouad Siniora, um muçulmano sunita, e conquistar oito postos no ministério. Na prática, isso significaria conceder aos xiitas o poder de veto em qualquer decisão governamental.
O protesto rapidamente degenerou em violência, com barricadas nas ruas e nas estradas. Partidários do governo reagiram com pedras e paus. O Exército foi convocado para conter a baderna e impôs um toque de recolher noturno. Na sexta-feira, havia sete mortos e 400 feridos. O perigo de um conflito generalizado decorre da tensa composição étnica e religiosa do Líbano. O país tem dezessete confissões religiosas oficiais, cinco entre os muçulmanos e doze entre os cristãos. Desde o fim da guerra civil, a paz depende de um tênue compromisso entre as diferentes facções, sustentado na distribuição eqüitativa de cargos no poder. Esse equilíbrio se viu abalado por três episódios recentes. O primeiro foi o assassinato, em 2005, do primeiro-ministro sunita Rafik Hariri, o político mais popular do país – nenhum libanês duvida de que o crime foi cometido a mando da Síria. O segundo foi a guerra de Israel contra o Hezbollah, em julho passado. Matou mais de 1 600 libaneses e deixou 200.000 desabrigados. O Hezbollah, que provocou o conflito ao seqüestrar soldados israelenses na fronteira, saiu-se vencedor pela simples razão de ter sobrevivido ao exército mais poderoso da região. O mais recente episódio foi o assassinato de Pierre Gemayel, ministro da Indústria e herdeiro de uma das mais poderosas dinastias cristãs do Líbano. A Síria é, mais uma vez, acusada de estar por trás do crime.
Por fim, o Hezbollah exigiu mais poder no gabinete libanês. Como o pedido foi rejeitado, retirou seus cinco ministros e deu início à campanha para depor Siniora. O primeiro-ministro é uma força modernizante, que se opõe à Síria (que ocupou o Líbano entre 1976 e 2005) e quer um país aberto ao Ocidente. O Hezbollah, por sua vez, quer um país nos moldes do Irã dos aiatolás e um clima de hostilidade aberta aos Estados Unidos e a Israel. Com o governo, estão os muçulmanos sunitas, a maioria dos cristãos e dos drusos, apoiados pelos Estados Unidos e pela Arábia Saudita. Na oposição, estão uma parte dos cristãos, liderados pelo populista Michel Aoun, um clã druso e os xiitas, que formam a mais numerosa comunidade religiosa. Há pelo menos três cenários possíveis para o desenrolar das tensões no Líbano. O otimista depende do sucesso das negociações entre o governo saudita e o iraniano. Na semana passada, um diplomata iraniano foi enviado à Arábia Saudita para estudar uma forma de os dois governos servirem de mediadores entre o governo libanês e o Hezbollah. Um acordo poderia incluir novas eleições no Líbano e a escolha de um primeiro-ministro de consenso.
O segundo cenário é a continuação do que se viu na semana passada, com confrontos esporádicos entre os grupos rivais. O cenário mais pessimista seria a deflagração de um novo conflito armado. "Uma das condições necessárias para uma guerra civil é a divisão da população em facções organizadas e reunidas ao redor de líderes sectários, o que já se vê no Líbano", disse a VEJA a cientista política americana Monica Toft, especialista em violência religiosa e étnica da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. O risco de guerra, de acordo com Monica, é agravado pelo formidável arsenal do Hezbollah, fornecido pelos iranianos. Contribui para o cenário pessimista a difícil situação econômica do Líbano. Na semana passada, enquanto o Hezbollah queimava pneus nas ruas, Siniora estava na França, onde arrecadou 7,6 bilhões de dólares em doações e empréstimos para ajudar na reconstrução da infra-estrutura destruída na guerra com Israel.
Contra a hipótese de guerra civil pesa o fato de que o Hezbollah pouco tem a ganhar com a luta fratricida. "Nasrallah quer apenas mais poder de barganha", disse a VEJA o americano John Brenkman, autor do livro As Contradições Culturais da Democracia: Pensamento Político na Era da Guerra Geo-Civil, sobre os conflitos do Oriente Médio. Com os ódios tribais à flor da pele, ninguém garante que os xeques possam controlar seus guerreiros. "Os líderes de ambos os lados pediram em vão a seus correligionários que contenham a violência", disse a VEJA a socióloga libanesa Rola el-Husseini, professora de política do Oriente Médio da Universidade Texas A&M. Para piorar, os confrontos da semana passada não refletem apenas as divisões internas do Líbano, mas também uma crise maior: a ascensão xiita. "O Líbano é uma peça fundamental na disputa pela hegemonia no Oriente Médio", comenta o cientista político libanês Nawaf Kabara, da Universidade de Balamand, no norte do Líbano. O grande manipulador é o Irã, centro da pregação xiita, agora fortalecido com a queda do regime sunita de Saddam Hussein, no Iraque. Se houver um confronto armado, o governo pouco pode contra o Hezbollah. Em termos de armamento e disciplina, a milícia xiita dá de 10 a 0 no Exército libanês.