Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 27, 2007

Ecstasy atrai jovens da classe média para o tráfico

Sob o poder do ecstasy

Jovens de classe média são o motor
do crescente tráfico da "bala"


Ronaldo Soares

Oscar Cabral
"Rodrigo" chegou a tomar oito "balas" na mesma noite: dezesseis internações até se livrar do vício


NESTA REPORTAGEM
Quadro: Do laboratório às festas

Quando agentes da Polícia Federal vasculharam prédios e condomínios de luxo do Rio de Janeiro, no fim do ano passado, ouviram as respostas-padrão dos alvos da operação: "Não sou vagabundo, sou da paz" e "Não ficarei muito tempo preso". Repetidas por alguns dos doze acusados de tráfico presos pela polícia, quase todos jovens de classe média alta, as frases retratam bem a realidade em torno dessa crescente praga urbana, as drogas sintéticas. Elas estão criando um novo traficante no Brasil, o garotão classe média ou alta que vende ecstasy e LSD, ácido lisérgico que tem mais de meio século de consumo. Os chefões do pó armados até os dentes e entrincheirados em favelas agora dividem a cena do crime com adolescentes e jovens de famílias com alto poder aquisitivo, que praticam esportes, fazem faculdade, dominam outros idiomas e são craques de internet. O fenômeno se alastrou pelas principais capitais do país. Ele está consolidando a triste classificação do Brasil como potência emergente no mercado mundial de drogas sintéticas.

O volume de apreensões de ecstasy pela Polícia Federal nos últimos anos mostra a escalada da droga no Brasil. O número de comprimidos apreendidos em 2001 era estatisticamente desprezível (1.900), mas em apenas três anos registrou um salto gigantesco: 81.900 unidades. Mesmo que em 2005 o total de apreensões tenha caído para 53.700 pílulas, nada indica que o problema esteja sob controle. Para a PF, isso pode ser resultado tanto do aumento da repressão ao crime como da utilização de novas rotas pelos traficantes. O representante do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime para o Cone Sul, Giovanni Quaglia, diz que há uma mudança de perfil no mercado mundial de ecstasy. A droga parou de avançar nos principais centros produtores e consumidores – os países europeus e os Estados Unidos. Em contrapartida, novos mercados estão surgindo, principalmente nos países em desenvolvimento. "Nossa preocupação é que essa tendência continue e o Brasil vire um destino interessante, porque o mercado tradicional está saturado", diz Quaglia.

As operações policiais feitas no Brasil para combater as drogas sintéticas mostram que jovens de classe média estão mergulhando de cabeça nesse mercado. Cerca de 90% dos presos nas operações têm esse perfil. São chamados de "traficantes playboys", pela polícia, ou street dealers (algo como "traficantes do asfalto"), por eles mesmos. Em 2002, a PF prendeu oito integrantes de uma quadrilha formada por jovens que levavam cocaína para a Europa e a Ásia e voltavam com drogas sintéticas. Parte do bando era formada por moradores de mansões de Brasília. Nos últimos dois anos, o delegado Luiz Marcelo Xavier, da Polícia Civil fluminense, chefiou operações que prenderam traficantes de drogas sintéticas em diferentes pontos do Rio. Dos setenta presos, 90% eram estudantes universitários. Eles usavam serviços de comunicação pela internet, como Orkut e MSN, para negociar ecstasy. Ou, então, revendiam a droga em raves e boates. "O traficante do morro não tem acesso a esses lugares. Por isso, o vendedor ideal é alguém que seja como os freqüentadores", diz Xavier.

Para ele, muitos jovens são atraídos para esse tipo de crime movidos pela falsa idéia de que se trata de um tráfico limpo, ou seja, não associado à violência que cerca as drogas comercializadas em favelas, como cocaína e maconha. "Nas drogas sintéticas, as quadrilhas não disputam na arma, e sim no preço", diz. Além disso, a droga vem se popularizando por ser de fácil circulação: não tem cheiro, é do tamanho de uma aspirina e fácil de ser "disfarçada". Pode ser guardada, por exemplo, dentro de embalagens com pílulas de doces, o que dificulta a identificação tanto pela polícia quanto pela família. Nem mesmo a polícia conhece em detalhes o funcionamento das novas quadrilhas ou o número de pessoas envolvidas. Mas aos poucos vão se delineando as características de seus integrantes (veja o quadro). Existe, por exemplo, a figura do atacadista, normalmente dono de negócios de fachada que opera no ramo de importação e exportação. Trata-se de pessoas que possuem contatos com laboratórios que fabricam a droga em larga escala no exterior, em geral na Holanda, o maior produtor mundial. Com o lucro das grandes encomendas que trazem para o Brasil, os atacadistas lavam o dinheiro comprando imóveis, registrados em nome de laranjas. Uma quadrilha desbaratada no ano passado pela PF na Operação Tsunami havia adquirido em três anos o equivalente a 5 milhões de reais em imóveis.

Outra forma de trazer a droga para o Brasil é fracioná-la em cargas menores, de até 400 comprimidos, por meio de encomendas postais. "Já encontramos ecstasy dentro de livros e até de sapatos vindos pelo correio. Para o atacadista, esse tráfico formiguinha é interessante, pois em caso de apreensão o prejuízo não é grande", diz o delegado federal Fernando Franceschini, da Coordenação de Operações Especiais em Fronteiras da Região Sul. Outra função importante na quadrilha é a do distribuidor, que compra parte da carga do atacadista e revende em lotes de no mínimo 100 comprimidos. Eles também têm a função de arregimentar revendedores, em geral jovens de classe média que vão a festas e boates repassar a droga ao consumidor final.

Albari Rosa/Gazeta do Povo/Pagos
A polícia em ação: apreensão de 81 900 pílulas em um ano


O ecstasy, ou MDMA, é um tipo de metanfetamina, substância estimulante do sistema nervoso central. Sintetizada em 1912, a droga já foi usada como moderador de apetite e até como desinibidor em sessões de psicoterapia, mas acabou proibida nos anos 80. Seu uso causa sensação de euforia, gerada pela descarga de serotonina – neurotransmissor ligado ao prazer e ao bem-estar – que ela produz no cérebro. Mas também acelera os batimentos cardíacos, eleva a temperatura corporal e desidrata o organismo, o que leva o usuário a consumir muita água – item, aliás, que nas raves costuma ser tão ou mais caro do que uma cerveja. Passado o efeito da droga, geralmente ocorre uma sensação de depressão que dura cerca de dois dias. Há casos de usuários que, para evitar essa reação, consomem cada vez com mais freqüência, o que leva à dependência. Foi o que aconteceu com o analista de sistemas carioca Rodrigo (pseudônimo), 30 anos. Usuário de ecstasy nos últimos quatro anos, ele chegou a consumir a droga diariamente. "Para obter o mesmo efeito, comecei a usar cada vez mais. Cheguei a tomar oito balas (comprimidos) em uma mesma noite", conta Rodrigo, que passou por dezesseis internações para se livrar da dependência de cocaína e ecstasy e está há mais de dois meses sem usar substâncias tóxicas.

Há outras drogas sintéticas que compõem com o ecstasy o grupo das chamadas club drugs. Como o GHB, ou ecstasy líquido, alucinógeno diluído em água ou no álcool. É extremamente perigoso, pois a diferença entre a dose que causa o barato da droga e a que pode levar à morte é tênue. Outro item da lista é a ketamina, ou Special K, anestésico veterinário do qual se extrai um pó branco para ser aspirado. Especialistas alertam para o avanço de uma droga desse mesmo grupo, com altíssimo poder de gerar dependência química. Trata-se do crystal, metanfetamina quase quatro vezes mais devastadora do que a cocaína. "Nos Estados Unidos, o crystal já é mais consumido do que o ecstasy. É atualmente a droga a ser combatida", disse a VEJA o psiquiatra Petros Levounis, diretor do Addiction Institute of New York, conceituado centro de estudo e tratamento de dependência dos EUA. No Brasil, já há relatos de consumo da droga no Sul e em São Paulo. Pelo visto, um novo perigo começa a rondar os lares da classe média brasileira.




Fotos Sean Garnsworthy/Getty Images, Ricardo D'Angelo e Nino Marques

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