Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 28, 2007

As águas de Tom Jobim Daniel Piza

Li, vi e ouvi muita coisa em razão do aniversário de 80 anos de Tom Jobim, comemorado como se ele estivesse vivo. Senti falta de uma observação que talvez o tempo venha a sedimentar: Tom Jobim não é apenas sua música; é um vértice da cultura brasileira em que se encontram o popular e o erudito, o nacional e o internacional, o natural e o urbano, o prazer sensual e o senso crítico - encontros que têm sido raros em nossa história. Por sua arte e por sua mente passaram o que para muitos soava e ainda soa como antagonismos. É fácil fazer da solução harmônica que ele deu para tais tensões uma tradução do que o Brasil foi (segundo os nostálgicos, tão mais nocivos quanto mais razão parecem ter), poderia ser (para os otimistas, que esquecem o custo de ignorar o passado) ou teria sido. Mas isso não é suficiente para explicar a elaboração e a tristeza de suas canções.

Há quem veja em seus cinco anos iniciais de carreira, antes do disco de Elizeth Cardoso, Canção do Amor demais, que é considerado o marco da bossa nova em 1958, como uma primeira fase do compositor, marcada por sambas-canções com Newton Mesquita e o Orfeu da Conceição com Vinicius de Moraes; afinal, ainda não havia a batida ao violão de João Gilberto. E há quem repudie os anos finais de Tom, sem voz nenhuma, tocando com um coro de familiares os sucessos de outrora. Mas seu nome rima com dois sons: o da canção bossa-novista, cultuada no mundo todo pela rica suavidade, pelo arco que desenha de Chopin ao cool jazz; e aquele que nasce com Matita Perê (1973), cuja faixa-título é a melhor demonstração do que ele bebeu em Villa-Lobos e Guimarães Rosa. Foi um gesto incomum de renovação - na MPB ou fora dela -, possível apenas aos que sabem dosar rigor e espontaneidade.

Conheço muitas pessoas, principalmente da juventude roqueira dos anos 70 e 80, que não gostam da bossa nova, que a consideram uma música “easy listening”, para americano ouvir, diminutiva, com versos como “o barquinho vai, a tardinha cai”. Mesmo em parcerias com o poeta Vinicius de Moraes, as letras não primam por sofisticação. Mas elas estão a serviço de uma música que reinventa a relação entre melodia, harmonia e ritmo, de sutilezas que até hoje deleitam ouvintes, músicos e estudiosos do mundo inteiro. As melodias, com motivos tão simples quanto surpreendentes, ganham pequenos intervalos tonais, ligeiros deslocamentos harmônicos, que se combinam ao ritmo variável - ora em aceleração, ora em desaceleração - e dão a sensação de cascatas, de um rio que oscila em direção ao descanso de uma laguna e, depois da pausa, volta logo a vazar e correr. Não se entende Tom, adorador da Mata Atlântica, sem pensar no tema das águas.

Essa fonte melódica, que pode se expandir para a amplidão (“da onda que se ergueu no maaaar”) ou se comprimir em síncopes (“olha/ que coisa/ mais linda/ mais cheia/ de graça”), é produto de seu esforço tanto quanto de seu dom. E não deixa de ser uma prova dessa riqueza que, em 1968, com a extraordinária Retrato em Branco-e-Preto, ela ganhe com Chico Buarque um tipo mais apurado de letra, com rimas internas e imagens refinadas, sem perder sua “cantabilidade”. A música de Tom é flexível a ponto de se verter no jazz de Stan Getz, no canto de câmara de Rosa Passos (que faz show em São Paulo no momento) ou na tessitura melancólica de Teresa Salgueiro, a cantora do Madredeus, que vi no Tom Jazz na sexta retrasada - e que até se saiu bem no gingado de Ary Barroso e Dorival Caymmi, mas brilhou mesmo quando fez A Felicidade, Insensatez, Inútil Paisagem e outras canções de Jobim, além da Valsinha de Chico e Vinicius.

Por isso mesmo, acentuar demais a influência da música americana - Gershwin, Cole Porter, Irving Berlin - irritava Tom, que sempre viu a tradição da canção brasileira com todos seus afluentes, a começar pela chamada Velha Guarda de Noel Rosa, Cartola e Pixinguinha. Se partiu, aos 46 anos, para os andamentos angulosos e as dissonâncias orquestrais de Matita Perê, que ainda não receberam a devida aclamação e não geraram a possível influência, foi porque essa era uma busca latente desde suas primeiras canções e porque sabia que atrás de Villa-Lobos estava não só Bach, mas também Stravinski. Tanto que depois disso, afora Passarim, ainda viriam obras-primas que combinam as duas fases, como Luiza, a canção que Caymmi queria ter feito e pode ter motivado Tim Maia a dizer que faria 80 canções com o mesmo número de acordes. No fundo, o que Tom talvez preferisse ouvir é que sua música é como a infância de Miguilim: “Triste-alegre.”

DE LA MUSIQUE

Foi com a música de Tom Jobim que Elis Regina, cujos 25 anos de ausência também estão sendo intensamente lembrados - o que não deixa de ser uma prova de como ela é insubstituível, inclusive por sua filha, Maria Rita -, atingiu, a meu ouvir, seu melhor momento, Tom & Elis. Antes de Elis houve Carmen Miranda, Maysa, Elizeth Cardoso; depois, Gal Costa, Maria Bethânia, Marisa Monte - entre tantas outras, antes ou depois. Não sei se Elis é a maior, mas é difícil outra que tenha sido e ainda seja tão ouvida por tantos públicos diferentes. E isso porque, antes de mais nada, ela era capaz de cantar os mais diversos ritmos. Em todos os programas exibidos sobre ela, nestes dias, ficam claras, além de sua versatilidade, a técnica e a personalidade que ela somava como ninguém.

Gosto de todas as Elis, desde a Elis nadando literalmente de braçada em Arrastão até a da versão definitiva de O Bêbado e a Equilibrista, passando pela interpretação densa de Atrás da Porta ou descontraída de Upa Neguinho, etc. Não gosto muito daqueles momentos exagerados, melodramáticos, em que ela canta chorando no palco, mais no final da vida. Mas, em discos como Tom & Elis, ela solta o melhor lado da sua personalidade, passa por todos os registros e só não deixa, em nenhum momento, de transparecer o prazer de estar cantando tudo aquilo.

RODAPÉ

Antonio Callado, que morreu há exatos dez anos, é outra voz que faz falta. Ainda merece um ensaio redentor, antes de mais nada porque fez o melhor romance sobre o período do regime militar, Reflexos do Baile, e um corajoso épico, Quarup. Cavalheiro sem igual, “mais inglês que os ingleses” (apud Nelson Rodrigues), e socialista humanista, preocupado acima de tudo com a compaixão - tema maior de Quarup -, Callado não deixava que sua visão impedisse sua ficção de sondar a maldade interior. Seu estilo, de cadências saborosas, criadas por vírgulas muito bem colocadas, era elástico o bastante para incluir cenas de violência e algumas das cenas de sexo mais bem cuidadas da literatura brasileira, nos livros citados e também em Sempreviva. Relendo outro dia suas Crônicas de Fim do Milênio, escritas na época em que o conheci, verifiquei mais uma vez como a discordância fica em segundo plano diante da elegância de seu estilo. Alguém disse de John Updike que a sua é uma inteligência “terna”. A de Callado, também.

UMA LÁGRIMA

Para o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, morto aos 74 anos. Era uma lenda viva do jornalismo literário. Nos anos 60 e 70, pela Polish Press, viajou o mundo cobrindo guerras, golpes e revoluções que marcavam o fim da era colonialista, feito um herdeiro de George Orwell. Embora tenha escrito sobre quatro continentes, inclusive a América Latina, e feito um livro sobre o colapso da União Soviética (Imperium), seu forte era a África. Ébano é a síntese de suas vivências como correspondente na Etiópia - que lhe renderia o livro mais famoso, O Imperador, sobre a queda de Selassié (material criticado por erros factuais) -, Ruanda, Sudão, Uganda, Somália ou Nigéria. Seu livro sobre a guerra civil em Angola, Another Day of Life, merece tradução no Brasil, onde recentemente foi publicado Minhas Viagens com Heródoto, cujo mérito maior é reler o historiador.

Kapuscinski conseguia como ninguém combinar o subjetivo e o informativo; usava a primeira pessoa para esclarecer o ponto de vista, mas quase nunca deixava o ego afastá-lo do objeto, o qual descrevia com precisão e sutileza. Ao contrário da reportagem pretensamente literária que se vê no Brasil, não descambava para a crônica, para o depoimento: respeitava a complexidade de seu tema. Ébano mostra a mentalidade de certas regiões africanas, a começar por sua noção de tempo; e o tom crítico - ao contrário do que se imagina nas escolas de jornalismo brasileiras - ajuda a acentuar o interesse por aquele mundo. Um polonês alcançar o nível dos melhores jornalistas anglo-saxões da segunda metade do século 20 é outro fato admirável.

POR QUE NÃO ME UFANO

Há um monte de ironias no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento, ou Programa de Apelo à Credulidade), lançado na semana passada pelo presidente Lula. A mais óbvia é a de que o pacote troca efeito por causa: se o País crescer 5% a partir de 2008, tantas obras serão executadas... Anuncia-se um total nada modesto de R$ 500 bilhões de investimentos em quatro anos, mas metade deles está a cargo da iniciativa privada. Bem... já combinaram com os russos? A iniciativa privada precisa que o Estado desobstrua o caminho, mas o plano não prevê nenhuma reforma - tributária ou trabalhista - para incentivar a produtividade; além disso, ignora-se o problema dos gastos públicos e aponta-se para uma satisfação com a dívida interna a 50% do PIB. O grosso do dinheiro vem de estatais, sobretudo da Petrobrás, e é dirigido para o setor energético; ou seja, mais uma vez o governo faz pouco caso da tecnologia, da pesquisa, de tudo aquilo que vem transformando a economia mundial desde o fim do século passado. Com as recriações da Sudene e da Sudam, o conjunto tem um sabor inequivocamente anos 70. Sem milagre à vista.

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