| O Globo |
| 24/1/2006 |
Numa conversa depois da entrevista que concedeu a Pedro Bial, o presidente Lula me disse que gostaria de contrapor argumentos às minhas críticas ao Bolsa Família. "Trata-se de um programa emergencial, ele não foi desenhado para durar para sempre", explicou o presidente, acrescentando que também ele quer ver reduzido o número de beneficiários, mas apenas à medida que menos gente esteja em condições precárias. "Mas é inegável que aquele dinheiro é fundamental para melhorar a vida daquelas pessoas", emendou o presidente, dando como exemplo a sua própria experiência de menino retirante nordestino em São Paulo, quando uma moeda de "cinco tostões" era fundamental para a sobrevivência da família. Eu lhe respondi que nada tinha contra o programa em si, mas contra a abrangência dele: não existem 11,2 milhões de famílias passando fome no país. A resposta do presidente foi objetiva: "Não posso discutir os números do IBGE. Se os necessitados forem menos, tanto melhor." A origem da confusão talvez tenha sido o ponto de corte escolhido pelo governo para decidir quem necessita ou não do dinheiro: R$ 100,00 de renda familiar per capita . Esse critério monetário pode ser eficaz para definir quem é pobre, mas não quem passa fome. A Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE já mostrou que a porcentagem de indivíduos emagrecidos está em 4%, abaixo do limite máximo de 5% considerado normal. Na Índia, esse número salta para 50%. No Brasil, a fome é residual, presente em alguns bolsões, e o número dos que sofrem dela deve ser contado na casa dos milhares e não dos milhões. Em síntese, nós somos pobres, mas não famintos. Em 2003, no lançamento do Bolsa Família, o governo anunciou como meta atender a 11,2 milhões de famílias, aquelas que, segundo a PNAD de 2001 (única então disponível), tinham renda familiar per capita igual ou inferior a R$ 100,00. Até dezembro de 2004, o governo distribuiu o Bolsa Família para 6,5 milhões de famílias. E, mesmo assim, ainda havia, em 2004, 10,5 milhões de famílias com renda familiar per capita igual ou inferior a R$ 100,00. Ou seja, mesmo tendo distribuído esse caminhão de dinheiro, o estoque de pobres só foi reduzido em 700 mil famílias. Por si só, isso é um indício forte de falta de foco: o dinheiro pode estar indo para quem tem renda per capita superior a R$ 100,00. Ou seja, além de ir para quem não tem fome, o dinheiro está beneficiando quem, na definição do próprio governo, não é sequer pobre. Falo em indício porque hoje é impossível saber com exatidão para quem está indo o dinheiro do Bolsa Família. Para que uma família se candidate ao benefício é preciso que ela conste do Cadastro Único, criado em 2001 com o objetivo de identificar todas as famílias brasileiras abaixo da linha de pobreza. Mas quem faz esse cadastro? As prefeituras. De que modo? Como bem entendem. As pessoas preenchem um formulário e declaram a renda da família, sem que precisem apresentar comprovação (isso está previsto em lei). Se a família tem renda per capi ta igual ou inferior a R$ 100,00, ela está apta a receber o benefício. O governo vem trabalhando junto às prefeituras para melhorar a qualidade do cadastro, mas, até aqui, tudo continua como antes. Hoje, nada pode assegurar que as famílias beneficiárias são de fato as mais pobres. Para agravar tudo isso, não há qualquer instrumento estatístico que possa mostrar ao governo se o Bolsa Família está atingindo o alvo certo. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) não traz pergunta específica alguma sobre rendimentos oriundos de programas sociais. Ao registrar a renda da família, o pesquisador está orientado a incluir o dinheiro do Bolsa Família numa rubrica chamada "outros rendimentos", que inclui também dinheiro vindo de aluguel, recebimento de juros e dividendos. Uma pequena salada. Como, porém, pobre, por definição, não recebe dinheiro de aluguel, nem de juros, nem de dividendos, alguns pesquisadores têm dito que é fácil ver nesta rubrica a presença do Bolsa Família: se ela cresceu entre os mais pobres, o dinheiro só pode ter vindo do Bolsa Família ou assemelhados. E, de fato, a PNAD mostra que, para as faixas de rendimento mais baixas, houve um acentuado crescimento na participação da rubrica "outros rendimentos" na renda total da família: para quem tem renda per capita igual ou inferior a R$ 100,00, em 2002, essa participação era de 3,7%; em 2003, subiu para 5% e, em 2004, pulou para 10,2%. Como a verba aplicada no Bolsa Família cresceu de R$ 3,6 bi, em 2003, para R$ 6,5 bi, em 2004, este aumento na participação de "outros rendimentos" na renda total das famílias é um indício de que o programa estaria atingindo o alvo. Uma análise mais atenta dos números mostra, porém, que essa não é a única realidade: o vazamento de recursos é grande. Dividindo-se as famílias em três faixas de rendimentos, verificaremos que o dinheiro alocado em "outros rendimentos" dividido pelo número de pessoas de cada faixa é muito parecido, quando devia ser maior na faixa mais baixa. Nas famílias com renda per capita de até R$ 100,00 o valor é de R$ 5,80; nas famílias com renda per capita entre R$ 100,00 e R$ 200,00 o valor é de R$ 5,40; e nas famílias com renda per capita entre R$ 200,00 e R$ 300,00 o valor é de R$ 4,50. Se somarmos os recursos declarados em "outros rendimentos" nestas três faixas, verificaremos que 40,7% deles são apropriados pelas famílias com renda per capita de até R$ 100,00; 38,2%, pelas famílias com renda per capita entre R$ 100,00 e R$ 200,00; e 21,1%, pelas famílias com renda per capita entre R$ 200,00 e R$ 300,00. Ou seja, 59,3% dos recursos vão para famílias com renda per capita superior a R$ 100,00. Um "vazamento" enorme. Há quem diga que não há um problema. O Brasil é tão pobre que se alguém jogar dinheiro para o alto quem o pegará no chão pode não ser o mais pobre, mas certamente será um pobre. Eu não penso assim. O Brasil tem leis e elas devem ser respeitadas. Não é justo que os mais pobres fiquem sem os recursos e que os menos pobres sejam beneficiados. Há que se ter eficiência. Do contrário, grandes somas de recursos estarão indo para quem não precisa, enquanto falta dinheiro para educação, que emancipa os pobres, e para investimentos em infra-estrutura, que prepara o país para o crescimento econômico e a geração de empregos. |
Entrevista:O Estado inteligente
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