É inimaginável que num país democrático, que esteja longe de ser uma república de bananas, um chefe de Estado e governo se arvore no direito de ditar como deva ser ou deixar de ser o relatório de uma comissão do Legislativo destinada a investigar fatos da administração pública (ou qualquer outro assunto). Mais inimaginável ainda - se possível fosse essa expressão superlativa - é o fato de parlamentares se submeterem à descabida interferência em sua instituição, acatando a exigência do governante de ser poupado (ou "não mencionado") na conclusão formal do trabalho investigativo, especialmente quando todos os indícios e evidências apontam para o pleno conhecimento que, na hipótese que lhe é mais favorável, esse governante tinha das falcatruas perpetradas por seu partido, em seu benefício eleitoral.
Eis por que causou a maior espécie a pressão exercida pelo presidente Lula sobre os dirigentes da CPMI dos Correios - o senador Delcidio Amaral (PT-MS) e o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), respectivamente presidente e relator dessa comissão - para que no relatório final não constasse o nome de Luiz Inácio Lula da Silva. Ao que tudo indica, essa pressão produziu algum resultado, visto que, se depois anunciou que se manterá firme na posição inicial, num primeiro momento o relator Serraglio deu a entender que recuaria em seu propósito de mencionar a responsabilidade do presidente Lula - pelo menos no capítulo negligência - em relação aos desmandos financeiros de seu partido e de auxiliares de seu governo.
O mínimo a esperar do chefe de Estado e governo é que deixasse o julgamento de seu grau de envolvimento, nos lamentáveis episódios referidos na peça de conclusão de trabalho daquela CPI, à sua instância exclusiva de competência - ou seja, ao próprio Poder Legislativo. Pois admitir tal interferência é aceitar um escracho ético-institucional que esvazia de valores o próprio conceito da separação de Poderes, ínsito a qualquer regime democrático digno deste nome.
Na verdade, a negação pura e simples de indícios veementes - por mais fracos, contraditórios e inconvincentes que pareçam os argumentos utilizados para desmenti-los - tornou-se a prática instituída do presidente Lula e seus auxiliares, começando pelo mais importante deles, o ministro da Fazenda Antonio Palocci.
Em seu depoimento de seis horas prestado quinta-feira na CPI dos Bingos, apesar de elogiado e apoiado por seus inquiridores oposicionistas - com destaque para o panegírico exacerbado que lhe ofertou o senador ACM -, o ministro não conseguiu dar resposta satisfatória a muitas das questões que lhe foram postas, como as relativas às ligações mantidas com Rogério Buratti, seu ex-auxiliar na prefeitura de Ribeirão Preto, que lhe fez as mais pesadas acusações de recebimento de propina para finalidades eleitorais; a estranha avaliação de idoneidade de outros auxiliares (como a admissão de funcionário do Itamaraty que havia sido exonerado a bem do serviço público); as ligações com o empresário Roberto Colnaghi (e utilização de seu avião, já como ministro); a indisposição de processar os que lhe fizeram graves acusações, deixando tal providência para "depois" do fim das investigações, como se delas dependesse e não houvesse o risco de cair na prescrição legal, etc.
Antonio Palocci não deu resposta convincente aos mais duros questionamentos que lhe fizeram os senadores José Agripino (PFL-RN), Heloisa Helena (PSOL-AL), Demóstenes Torres (PFL ), Antero Paes de Barros (PSDB-MS) e sobretudo Jefferson Péres (PDT-AM), que lhe apontou o não preenchimento da exigência ética (atribuível à mulher de César) de não só ser honesto mas "parecer honesto". Mas, por trás das aparências e de todo o apoio que recebeu e tem recebido das forças oposicionistas - já que se tornou alvo apenas do "fogo amigo" de seu próprio partido -, o ministro da Fazenda demonstrou, mais uma vez, que é o sustentáculo que restou ao governo Lula, responsável que é pelos índices favoráveis da economia, em termos de contas externas, redução do desemprego e outros itens favoráveis. Ao contrário do presidente Lula, o ministro Palocci reconhece explicitamente - como fez, mais uma vez, na CPI - que os frutos agora colhidos na economia vêm de semeaduras já realizadas em governos anteriores, em termos de ajustes e responsabilidade fiscal. Restaria apenas a indagação: como seria o governo Lula, sem Palocci?