Nada mais fácil do que predizer o pior dos mundos, em conseqüência do formidável triunfo eleitoral do Hamas na primeira eleição parlamentar pluripartidária - além de livre, limpa e pacífica - promovida pela Autoridade Nacional Palestina (AP). Depois de se instalar como organização assistencialista nos territórios ocupados, em meados dos anos 1980 - com o discreto apoio de Israel, interessado em enfraquecer o hegemônico movimento Fatah, de Yasser Arafat -, a entidade inspirada na Fraternidade Muçulmana egípcia assumiu em pouco tempo sua identidade política e seus objetivos.
Desde então, coerente com a meta de destruir o Estado judeu, o Hamas matou cerca de 400 pessoas em atentados suicidas, condenou cada uma e todas as negociações entre a OLP, controlada pelo Fatah, e sucessivos governos trabalhistas israelenses. A eleição de Sharon em 2001, o esmagamento da segunda intifada pelos métodos mais impiedosos, a intransigência do primeiro-ministro hoje em coma e a sua decisão de demarcar unilateralmente as fronteiras do que seria o Estado palestino só aumentaram a popularidade do Hamas.
Muito se fala que a sua vitória se deve à visceral corrupção e incompetência da AP, à pobreza, desemprego e esqualidez da vida nos territórios ocupados. É parte da verdade. Qalqilya, de 50 mil habitantes, no norte da Cisjordânia, era um feudo do Fatah. No ano passado, Israel ergueu um muro de concreto ao seu redor. Nas eleições municipais que se seguiram, o Hamas conquistou todas as cadeiras da câmara legislativa local. De resto, Sharon jamais deu ao pragmático sucessor de Arafat, o atual presidente Mahmoud Abbas, algo que ele pudesse exibir aos seus como sinal de que o diálogo compensa e a violência, não.
Agora, todos se perguntam que perspectivas de paz pode haver quando um partido religioso armado passa a dominar um dos campos. O Hamas avisa que não tratará de nada "diretamente" com Israel. O primeiro-ministro israelense interino, Ehud Olmert, anuncia que não negociará com um governo palestino integrado por terroristas. Aposta-se que o êxito do Hamas dará a vitória ao Likud de Benjamin Netanyahu nas eleições de março. Mais extremista do que Sharon, ele se opôs à retirada unilateral de Gaza, obrigando o velho general a deixar o Likud para fundar um novo partido. Netanyahu já disse que a Palestina se transformou em um "Hamastão".
Apesar de tudo, pode não ser absurdo admitir que, se não piorar além da conta, a situação poderá até melhorar - mais para a frente. O presidente Bush disse certa vez que os palestinos precisavam negociar com os israelenses sempre levando em conta "as realidades no terreno" (the realities on the ground). Ele aludia às colônias judaicas na Cisjordânia. Mas o argumento se aplica à realidade criada pelo "terremoto palestino". Não se espera, por exemplo, que o Hamas apague dos seus estatutos a meta de destruir Israel. Mas não disse uma palavra sobre isso na campanha e continuará a não dizer - a menos que tenha a insana intenção de levar a União Européia, que também o considera terrorista, a cortar a ajuda que mal mantém os palestinos respirando. Além disso, há um ano, o Hamas deixou de atacar Israel e promete manter o cessar-fogo unilateral.
Sem novos atentados nem "assassinatos seletivos" em represália, o retrocesso poderá ser abreviado quando as partes aceitarem o mal menor - as realidades no terreno. É o que ensina a História. Atos de terror foram cometidos para a criação de Israel por fanáticos como os do Hamas, que viriam a formar o Likud. O passado terrorista de Menachem Begin não impediu que o egípcio Anuar Sadat o procurasse para fazer a paz. O Hamas nega Israel? Pois a antecessora de Begin, Golda Meir, dizia que não havia palestinos. E o passado terrorista de Arafat não impediu que, a contragosto, Yitzhak Rabin lhe apertasse a mão, celebrando os Acordos de Oslo. Daí nasceram a aceitação de Israel, o protogoverno da AP e as eleições palestinas.
Elas completam um ciclo de mudanças imensas em pouco mais de um ano: Arafat morreu, Sharon saiu de cena, o poder se deslocou na Palestina depois de quatro décadas. Hoje o Hamas está onde o Fatah estava antes de sua fundação. Poderá continuar assim, sendo governo?