Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 28, 2006

Variações sobre o livro e a internet

OESP
Variações sobre o livro e a internet

Miguel Reale

Ouço, freqüentemente, que o futuro do livro está marcado pela sua próxima ou recente substituição pelo site da internet. Penso, ao contrário, que, por mais que se desenvolva esta, com o seu oceano de perguntas e de respostas, o livro continuará a existir na sua missão perene.

Quando falo em livro, quero me referir a um conjunto unitário e sistemático de trabalhos, quer seja de ensaios de filosofia ou de direito, de tratados de ciências, de um romance ou de uma reunião de poesias ou de crônicas. A sua essência somente reside na unidade sistemática.

É claro que a internet, com os milagres do computador, registrará os livros por inteiro, mas os substituirá por inteiro, não os anulando.

Nada há de mais profundo e de criador do que uma nova idéia a gotejar na ponta de uma caneta.

Por mais que o computador enriqueça a internet, o livro continuará sendo um ente essencial e necessário, exatamente por sua unidade sistemática, que é um valor autônomo.

Quem está lendo um livro está em uma situação singular, podendo anotá-lo, repetir uma frase ou um período no contexto de um todo inteiro.

A internet será sempre um oceano de perguntas e respostas, por mais que seja divisível em partes, cada uma delas com o conteúdo de um livro.

Dir-se-á que o livro representa um trabalho que teve êxito, realizando um fim próprio somente seu, e não como um átomo inserido numa molécula, que lhe dá substância.

Pense-se na crítica de um livro, e imediatamente se compreenderá que não se trata de uma parcela do informado na internet, mas de algo que foi pensado de per si.

O que distingue o livro é, repito, sua unidade sistemática, perdendo sentido sem essa qualidade essencial.

É claro que, se o meu propósito se resume em pensar num trecho de um livro, bastará o site da internet, mas deixará esta de nos dar a idéia de um todo que, antes de mais nada, vale por si só.

Nada mais substituirá a internet na sua façanha de responder a todas as perguntas, no infinito do conhecimento humano, como se a humanidade fosse uma só!

A meu ver, a deficiência da internet é ser uma infinidade de respostas, que pressupõe que alguém tenha tido uma idéia. Ela por si só não seleciona as perguntas dadas. Se quisermos uma resposta, ainda não objeto de pesquisa, esta será previamente exigida, dependendo de um trabalho antes pensado, incluso no contexto de um livro.

O mal da internet está, insisto, na falta de seleção do que informa, de maneira que o livro existe sempre como algo que foi trabalhado e armazenado.

Sob esse ângulo, dir-se-ia que é através do livro que a internet consegue selecionar, não podendo, pois, desprezá-lo. Ou, por outras palavras, a mesma presteza informativa a internet precisa ter com os livros que ela registra.

A diferença entre a internet e o livro, assim, consiste em que naquela não há seleção na resposta, ao passo que o outro é de per si uma seleção, com perguntas pressupostas.

Donde se conclui que, quanto mais a internet registrar, mais se terá necessidade de manter o livro como ente autônomo.

Em outros termos, pode-se concluir que os verdadeiros livros consubstanciam blocos racionais que garantem o mínimo de unidade sistemática reclamada pela significação global da internet.

Ainda não temos plena consciência do quanto representa a internet com sua "infinidade de informações", mas é uma infinidade de acesso fácil, ficando preservada a autonomia do livro.

Entre internet e livro não há uma dialética de duração do livro, à medida que seja este registrado. Ao contrário, para que o conteúdo infinito da internet seja selecionável, sendo essencial a todas as esferas do conhecimento, é indispensável que lhe sejam submetidos os livros como entes a se.

Restam muitos problemas a resolver a propósito do tema "internet/livro", bastando dizer que, com isso, se assegure o direito de autor, que corre o risco de desaparecer com a infinita projeção da internet. É inadmissível que o direito de autor não contenha o justo preço de uma idéia criadora, seja existente no plano das ciências ou das letras. Há quem sustente que com a internet deixa de haver direito de autor, o que me parece absurdo.

Devemos estudar essa questão do direito de autor, prevendo a necessidade de prévia autorização para inserção de um trabalho na internet, muito embora isto crie natural embaraço, dada a universalidade que lhe é própria.

Por outro lado, deve-se reconhecer que dificuldade haverá para estabelecer limites a uma criação técnica que parece destinada a abrir novos horizontes para a civilização.

Miguel Reale, jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, foi reitor da USP. E-mail: reale@miguelreale.com.br. Home pages: www.miguelreale.com.br e www.

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