A América Latina vive tempos interessantes, embora carregados de maus presságios. O Brasil sumiu do radar do Fórum Econômico Mundial, em Davos, deslumbrado com a formidável ascensão da China e da Índia. Ao mesmo tempo, o presidente venezuelano Hugo Chávez consolidou a sua condição de novo ídolo da esquerda continental, representada pelos mais de 70 mil participantes do Fórum Social em Caracas, desbancando o encanecido Fidel Castro. Por último, na Bolívia, a equipe do presidente Evo Morales emite sinais desacorçoantes - porque a esmagadora maioria dos seus membros não faz a menor idéia do que é o Estado, do que significa administrar e, pior, de como funciona o mundo.
Nesse sentido, poucas manifestações terão sido tão reveladoras quanto a entrevista do novo chanceler boliviano David Choquenhuanca ao enviado deste jornal a La Paz, Lourival Sant'Anna, publicada na sexta-feira. Da etnia aimará como Morales, sindicalista rural, diplomado numa escola cubana de "formação de quadros", Choquenhuanca encarna não menos do que o seu amigo e chefe o "lindo espetáculo" a que se referiu Lula, na posse de Morales, aludindo ao fato sem precedentes da eleição de um indígena no país - a expressão mais notória do movimento de afirmação política, estendendo-se dos Andes ao México, dos herdeiros das civilizações pré-colombianas.
Numa perspectiva humanista, o resgate da identidade e da cultura ancestral, dizimadas ao longo dos séculos pelo colonialismo espanhol e pelas europeizantes elites locais, seria de louvar irrestritamente não fossem três dados da realidade que com isso se entrelaçam. Primeiro, a mentalidade que idealiza o passado anterior à Conquista, como se a cruel empreitada colonial tivesse sido um raio no céu azul de um Éden idílico e fraterno, que nunca tivesse conhecido nem a violência, nem a opressão - em suma, o mundo do "bom selvagem" imaginado por Jean-Jacques Rousseau, com a diferença de que os povos indo-americanos não eram selvagens, no sentido usual da palavra, mas construtores de notáveis civilizações.
"Éramos um só continente, chamado Abiayala, no qual vivíamos como irmãos", suspira o chanceler boliviano Choquenhuanca. "Nos dividiram com fronteiras, bandeiras, hinos. Assim fracionados, não poderemos sobreviver. Precisamos voltar ao nosso grande Abiayala." A idealização preocupa pelo segundo dos dados da realidade acima referidos. Pois dela deriva a fantástica sugestão de reconstruir o comunismo primitivo, o que seria uma guinada regressista sob aparência progressista. O ministro quer que as multinacionais do petróleo e gás invistam na Bolívia e lhe transfiram tecnologia, obedecendo ao princípio do uaki, pelo qual os nativos devem compartilhar os seus bens com os demais até que estes se tornem autônomos. É de imaginar os colossos do setor se acotovelando para chegar logo a La Paz.
O anticapitalismo dos líderes nativos, desde o subcomandante Marcos no México ao candidato presidencial Ollanta Humala no Peru, mais Evo Morales, teria restrita importância não fosse o terceiro dado da realidade - o fato de o seu mentor ser Hugo Chávez, "base de apoios econômicos e políticos, e provedor de receitas úteis de desestabilização", como ressalta o professor espanhol Antonio Elorza, em alentado artigo para o El Pais, de Madri, transcrito ontem no Estado. Ele observa que os indigenismos na área andina "se combinam com interesses econômicos muito concretos, como a defesa do cultivo da coca, e desfrutam para a sua reivindicação, ao mesmo tempo étnica e nacionalista, de um ambiente favorável: regimes democráticos que contemplaram o fracasso das burguesias criollas, servis à 'águia temível'".
Para os brasileiros, não deixam de ser instrutivos o protagonismo de Chávez, com a sua Revolução Bolivariana, e a onda indianista que embute diversas ideologias sob o denominador comum da vontade de poder, como ressalta Elorza. E são instrutivos porque permitem distinguir formas de pensar, situações objetivas e metas a alcançar. O mundo a que pertence o Brasil - e isso haverá de estar claro para o presidente Lula - é outro, o dos Brics, o acrônimo que designa os países emergentes (Brasil, Rússia, Índia e China). O tempo com que nos defrontamos é o da globalização, não o pré-colombiano ou o colonial. E para esse mundo e para esse tempo Lula deve se voltar se quiser que deles o País não seja posto à margem.