Como qualquer observador objetivo sabe, a única virtude da recente reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi a de não ter deixado a Rodada Doha morrer. Não ganhamos nada ainda, nem temos nenhuma garantia sólida de que vamos fazê-lo. A única colheita significativa de Hong Kong foi uma vaga declaração de que, em 2013, serão removidos (conforme condições pouco claras) os subsídios à exportação, que tanto nos prejudicam por fomentarem uma concorrência desleal dos produtos agrícolas não-competitivos, sobretudo da Europa. Nada de preciso ficou assentado sobre redução dos subsídios à produção ou sobre remoção dos entraves existentes para o acesso aos maiores mercados consumidores mundiais de alimentos. Mas a OMC está viva e isso é essencial para um país como o Brasil, que tem no comércio internacional um instrumento-chave para o crescimento econômico de que tanto necessita.
Temos obtido resultados muito significativos pela via do sistema de solução de controvérsias da OMC, que nos deu importantes vitórias no açúcar e no algodão, para só se referir às mais recentes. Este caminho se tem revelado eficaz para conseguir avanços que seriam muito mais lentos pela negociação. Mas é preciso sempre ter em mente que, se a organização se enfraquecer por causa do insucesso da Rodada Doha, o mecanismo quase judiciário dos panels perderá eficácia e capacidade dissuasória. E as superpotências do comércio internacional tenderão a desrespeitar seus veredictos ou, o que é pior, a agir unilateralmente como protecionistas, sem se preocupar com os ditames da OMC.
O ano que se inicia será muito importante para o futuro da organização. Durante seu curso deverão ser encaminhadas, de forma acelerada e talvez conclusiva, as negociações da Rodada Doha. Diferentemente de 2005 e dos anos anteriores, os prazos-limite são para valer, porque em meados de 2007 expira o Trade Promotion Act - mandato indispensável que o governo americano recebeu do Congresso -, sem o qual não é viável nenhuma negociação internacional da qual os Estados Unidos sejam parte. Assim, o trabalho deverá estar muito avançado em 2006 para permitir a conclusão da Rodada Doha até a data-limite, pois o Congresso americano, no seu atual espírito protecionista, muito dificilmente vai renovar o mandato negociador do Executivo.
Para o Brasil se colocam duas questões essenciais: a liberalização do comércio agrícola, como o objetivo fundamental, que vimos perseguindo desde os anos 1990; e a sua recíproca, que é o grau de abertura que aceitaremos conceder no setor industrial e em serviços.
Se as negociações em Genebra avançarem decididamente, o Brasil terá de tomar decisões difíceis. Nossa tradicional liderança entre os países emergentes - que tomou forma mais recente no oportuno G-20 - não é garantia de que venhamos a ter respaldo para nossas reivindicações mais abrangentes na área agrícola. Isso porque a China, a Índia e muitos outros países que integram o G-20 têm ênfases distintas das nossas e, na hora da verdade, podem deixar de acompanhar nossa posição. O primeiro dilema, portanto, será como graduar nossas prioridades de negociação, sem abrir mão da essencial prioridade à nossa agricultura, mas evitando o risco do isolamento e da diluição dos resultados finais.
Por outro lado, temos a questão do grau de abertura de nosso mercado de produtos industriais e de serviços que podemos aceitar sem expor nossas empresas industriais a uma concorrência devastadora. Sabemos que elas já enfrentam gravíssimos desafios, como os juros estratosféricos, a imensa carga tributária e a avalanche chinesa. Mas, ao mesmo tempo, temos de ter alguma moeda de troca nas negociações. Na enorme gama de setores e produtos que nossa economia gera, certamente haverá alguns que estão mais preparados para a competição externa, assim como haverá outros em que os atuais níveis de proteção são excessivos e desnecessários. Por exemplo, não me parece razoável que haja tarifas muito elevadas em produtos informáticos, pois o consumidor e o produtor acabam prejudicados por altos preços e custos, em benefício de uma indústria nacional menos competitiva do que a internacional. De outra parte, não é justo expor nossos produtores de têxteis ou de papel, por exemplo, a fortes embates externos, depois do grande esforço de modernização que têm feito e do enorme número de empregos que poderiam ser perdidos por uma abertura prematura. Caberá ao governo a difícil tarefa de fazer as escolhas certas.
Ninguém pode assegurar que a Rodada Doha terá uma conclusão bem-sucedida, nem sequer que as chances de êxito sejam razoáveis. Pessoalmente, creio que os países desenvolvidos - em particular os europeus, os Estados Unidos e outros, como o Japão, a Suíça - não estão dispostos a ir além de limites muito curtos. Os interesses agrícolas nesses países são respaldados por fortes lobbies e pela opinião pública, o que deixa margens políticas muito estreitas para concessões, como se acaba de ver novamente em Hong Kong. É por isso que, há muitos anos, os avanços na liberalização do comércio agrícola internacional são graduais e lentos, sendo o caminho marcado por impasses e retrocessos.
Temos de nos preparar para um embate duro. Para tal, o Brasil precisa calibrar adequadamente sua posição, sem exageros retóricos nem ênfase exclusiva nas demandas agrícolas em detrimento da indústria. É imperativo perseguir objetivos concretos e possíveis, mas não devemos, de outro lado, fazer concessões excessivas que ponham em risco parcelas importantes do setor produtivo brasileiro. Mesmo porque não há nenhuma garantia de que, para os campeões do protecionismo agrícola, a abertura de nossos mercados de bens e serviços seja moeda de troca real para eventuais concessões significativas de sua parte.