Todo mundo escreve crônica ou conto de Natal, quase ninguém de réveillon. O Natal, data arbitrária, inspira defesas piegas da solidariedade e inocência ou, então, críticas ao consumismo e cinismo modernos, para não falar das indefectíveis matérias sobre religião na imprensa. Nem mesmo os defensores do saci contra o Halloween aparecem para se queixar de uma festa em que todos os itens remetem a um frio e a um imaginário nada tropicais. Também me espanta, por outro ângulo, que se fale de um "espírito natalino" como se ele não devesse existir em outras épocas. "Deixe disso, hoje é Natal" parece liberar o interlocutor para ser egoísta, mal-educado e impaciente no resto do ano. Como Drummond, considero a divisão do tempo em anos um achado. Não por completar uma rotação em nossa órbita; nossa vida não mudou de ontem, dia 31, para hoje, dia 1.º, não mais do que mudaria de um dia qualquer para outro. Mas essa desaceleração de fim de ano, que sugere descanso e balanço, tem valor. Dizem, principalmente os tais pós-modernos, que o homem mede o tempo para controlá-lo; pode ser, assim como é verdadeiro que a maioria das pessoas vive numa correria ansiosa, à procura de uma estabilidade que nunca chega. Só que a solução não está em demonizar o calendário, muito menos em não enxergar o engenho humano que cria instrumentos e amplia conhecimentos. Vejo muita gente se aproximando de culturas orientais, quase sempre reduzidas a modismos, porque nelas não existiria essa mania ocidental de viver o tempo todo rendido ao futuro ou, no caso dos desesperançados, agarrado ao passado - ambos, futuro e passado, evidentemente idealizados. As pessoas quase nunca estão quando e onde estão. Umas anunciam ter 14 "projetos" simultâneos, outras passam a maior parte do tempo pensando no que foram ou poderiam ter sido. É o paradoxo atual: quanto mais coisas fazem, mais as pessoas se sentem perdendo tempo. Daí, de maneira muito ocidental, a obsessão por um sossego que nunca vem, exemplificada pelos congestionamentos de feriado. É preciso organizar o tempo até para poder romper com a rotina, medi-lo para não ser controlado por ele. É importante ter ambições na vida desde que sejam genuínas, autônomas, e não emprestadas, por exemplo, pelos estigmas da época. É bom programar seus dias, assim como de vez em quando invadir as noites. É possível ser sério quando necessário e descontraído quando desejado - só assim você não vai ser nem tenso nem relapso. Inquietude mental não é incompatível com alguma dose de tranqüilidade, do dar-tempo-ao-tempo; a percepção pode ser acelerada, sem prejuízo para certa segurança interior, para certa confiança de que o melhor é o estar fazendo, não o ter feito. A ansiedade pode aguçar os sentidos; não precisa agoniar a existência. Ilusão só chama desilusão. Na minha revisão do ano, há a satisfação de pelo menos quatro sonhos realizados, dois deles - um filho e um livro - sonhados há muito. Mas metas nada são sem momentos; houve também estes dias de folga, curtidos sem compromisso rígido com horário e hierarquia, em companhia de minhas duas filhas. Verissimo diz que a última semana do ano não tem utilidade; mas por isso mesmo ela pode ser tão agradável. Fomos ao parque e à piscina, vimos a bela exposição de Miró no Instituto Tomie Ohtake, comemos pastel de feira, tomamos sorvete de casquinha, revimos o DVD do Palavra Cantada e encenamos a linda canção do rato, etc. Em nossa sensibilidade precisamos desses túneis abertos para a infância, onde se pode ficar sem pressa e sem preço. O Natal vale por isso, vale pelas crianças de olhos brilhando diante da pilha de presentes - além, é claro, dos pêssegos, das carnes, da rabanada, da cassata igual à que minha avó fazia. Tudo o mais são rojões e superstições. DE LA MUSIQUE Mozart é um pouco esse estado de espírito, essa possibilidade de estar aqui e e além ao mesmo tempo. Neste ano, 2006, o mundo vai comemorar os 250 anos de seu nascimento, e a festa já começou: o CD duplo de Anne-Sophie Mutter, The Violin Concertos, é esplêndido. Ela toca os cinco concertos para violino e também a Sinfonia Concertante (com Yuri Bashmet à viola) e é ela mesma que rege a Orquestra Filarmônica de Londres. Seu Mozart tem a necessária combinação de graça e vigor, e no Concerto n.º 5 em lá maior ela delineia todos os acentos e andamentos, nos lembrando de como era bela a música que se aproximava do canto e da dança. Nada como Mozart para um ano menos mesquinho. Outro lançamento de virada de ano que não merecíamos é o da apresentação do quarteto de Thelonius Monk no Carnegie Hall em 1957, com ninguém menos que John Coltrane, além de Ahmed Abdul-Malik (baixo) e Shadow Wilson (bateria). É o auge do bebop, Monk passeando pelas notas azuis do piano enquanto Coltrane improvisa tempos e alturas. As músicas são de Monk, preferidas minhas como Evidence, Monk's Mood e Epistrophy. O CD me fez pensar de novo em como o ato de criar é um prazer intransferível, um diálogo entre autor e criatura ao qual o espectador tem um acesso indireto - e, neste caso, gratamente feliz. ZAPPING Há alguns incômodos a respeito de Belíssima, atual novela das nove, escrita por Sílvio de Abreu. Primeiro, essa estranheza - já ocorrida antes em Celebridade - que é a TV Globo tentando olhar criticamente para uma das forças que a movimentam, no caso a indústria das aparências, e a novela está repleta de modelos sem talento de ator. Segundo, o retrato dos imigrantes, caricatural, a tal ponto que a mulher usa o tratamento de "turco" quando se dirige ao próprio marido. Mas, ah, que diferença para a novela anterior. Humor, romance e intriga são bem calibrados, o elenco é bom pelo menos nos papéis principais (Fernanda Montenegro, claro, em destaque) e é possível que a novela faça algo parecido com o que Vale Tudo fez em 1989, se continuar investindo no tema tão atual da ética nas diversas esferas da vida. Só não posso deixar de notar, ainda, que não dá para entender por que os personagens decentes da TV brasileira - Cemil, em Belíssima, e Lineu, em A Grande Família - precisam ser tão sem charme. POR QUE NÃO ME UFANO Elogiei algumas vezes a idéia do Bolsa-Família, mas também sempre fui crítico do assistencialismo. Onde a diferença? Não acredito na onipotência do livre-mercado e no Estado "mínimo". A chamada proteção social é adotada em diferentes graus, ou foi adotada em determinados estágios, por todos os países desenvolvidos, sem exceção. O Estado não deve prover o salário que o mercado deixa de dar; pode, porém, permitir que as pessoas tenham o mínimo para comer e estudar. A rigor, a tal "terceira via" - o meio-termo entre o capitalismo desregulado e a social-democracia intervencionista - é o caminho organicamente seguido por essas nações. Mas há diferentes modos e doses para atingi-lo. Nos países escandinavos, por exemplo, todos os serviços sociais são gratuitos e de qualidade, financiados pela alta carga tributária. Mas são os países mais abertos do mundo, em que o comércio internacional significa a grande fonte de riqueza, e contam com população pequena, homogênea, etc. O Brasil, de economia ainda muito fechada, máquina pública pouquíssimo eficiente e desigualdades regionais gritantes, comete suicídio ao cobrar quase 40% do PIB em impostos. Assim, põe em risco a suposta boa intenção de programas sociais como o Bolsa-Família, que terminam funcionando como mesada de consolo para quem tem pouca instrução, emprego formal, esgoto e médico, de tal modo que não sabe nem planejar o número de filhos que tem condições de criar. O bom programa social, como Amartya Sen e outros têm estudado, é o que está atrelado a políticas de desenvolvimento humano, de forma que a ajuda de custo fique cada vez menos importante ao longo do tempo, e não cada vez mais, como pensa o governo Lula. Precisa ter, antes de mais nada, foco. Se atinge 40 milhões de pessoas, embora eu não acredite no que diz a propaganda do governo (até porque esse governo nem sabe dizer quantos são os brasileiros subnutridos), então não está cumprindo seu objetivo - para não falar dos inúmeros desvios, alguns deles já comprovados. Essas pessoas não estão sendo retiradas da pobreza, mas acomodadas a ela. Parte do dinheiro seria muito mais benéfica a médio prazo se usada de outras formas; por exemplo, para incentivar um agricultor a não plantar apenas a abóbora que vai comer no dia seguinte. Uma coisa é amparar, outra é condicionar. Aforismos sem juízo Se servisse apenas para embelezar a vida, a arte já seria importante. Se servisse apenas para expressar as emoções e entreter os sentidos, também. Mas a grande arte serve ainda para perturbar as visões de mundo consoladoras, revelando outras naturezas humanas. Ela importa por não parecer importante.
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domingo, janeiro 01, 2006
Daniel Piza Crônica de réveillon
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