Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, novembro 01, 2005

O filme ‘Vinicius’ é a viagem a Ipanema do ar POR ARNALDO JABOR



Vem aí um estouro de bilheteria. Assim como os "Dois filhos de Francisco", é também um poema afetivo, só que em outra chave. Não é um filme de ficção tradicional, não é um documentário. É uma terceira coisa, um ensaio poético, um pensamento filmado, um álbum biográfico sobre Vinicius de Moraes, o homem vertiginoso. Chama-se "Vinicius", co-produzido com sua filha Suzana e dirigido por Miguel Faria Jr., durante três anos de torturadas pesquisas e reflexões para retratar a apaixonada busca do poeta por uma felicidade não conformada, pela conquista de um êxtase, de uma plenitude que ele mesmo desconhecia. Jorge Peregrino, o presidente da UIP, me segreda: "É um arrasa-quarteirão". Isso mesmo: quem conhece a relação cinema-público, quem já sofreu a angústia da comunicação tela-olho percebe que há um feitiço raro, um mistério nesse filme de Miguel que provoca em nós uma intensa ligação amorosa, que faz muita gente sair chorando e rindo, querendo ver de novo. Por quê? Vamos tentar entender esse mistério. O filme tem sacanagem? Não. Tem violência? Não. Suspense e efeitos especiais, corrida de carros, tiros e porrada, princípio, meio e fim? Não. Nada disso. No entanto, tem uma alma líquida, um fluido que corre entre as imagens que tocam o espectador como um contato físico, um beijo.

Uma das chaves do segredo é o tema. Vinicius de Moraes é o herói de duas décadas do grande mito de felicidade do Brasil: Ipanema dos anos 50, 60, a época que começa em JK e vai até 64, com o golpe militar que mudou o rumo do país. Íamos numa direção e entramos num desvio, onde até hoje estamos.

O filme mostra um passado que poderia ser nosso presente. Ipanema era uma ilha de felicidade num país injusto, mas foi um momento raro em que o desejo e o projeto pareciam se encontrar, numa harmonia entre a praia, o bar, as ruas com amendoeiras, ruas calmas onde a música, o Cinema Novo, a literatura floresceram, antes do início da massificação. Tom Jobim disse uma vez: "O Brasil só será feliz quando for uma grande Ipanema". Estranhamente, o Cinema Novo nunca captou esta felicidade e esta esperança. Apenas um grande filme foi feito sobre esta época: "Todas as mulheres do mundo", de Domingos de Oliveira, um clássico romântico, que nosso ideologismo neurótico sabotou na época. "Garota de Ipanema", de Leon Hirzsman, fracassou, pois Leon (grande cineasta) não conseguiu amar a beleza "pequeno-burguesa" e fez um filme "contra a alienação" de Ipanema. Só podíamos criticar, não conseguíamos louvar nada, nesses tempos ideológicos. Assim, faltava um testemunho dessa época de ouro, e ele veio agora, 30 anos depois, neste filme de Miguel Faria. Só agora o cinema mostra essa delicadeza perdida. Viver em Ipanema era uma experiência artística e política. Estávamos em plena utopia antes da chegada do mundo real em 64; antes do pesadelo, tivemos um sonho. Vivíamos em um espaço-tempo em que o amor estava se reinventando, sexualizado, abençoado com o surgimento da pílula e com o brilho mágico do psicodelismo. Ir à praia era um ato político. Ver o pôr-do-sol era um comício. A felicidade não teria fim, e a tristeza, sim. No entanto, não éramos políticos de traços duros, de luta, panfletos e fábricas; era uma política poética, soft , romântica. As casas viviam de portas abertas, onde se fazia música pela madrugada, onde se discutia literatura e revolução, época querida quando as namoradas começaram a "dar". Sexo era política. Eu me lembro de dizer a uma namorada que nosso amor era uma forma de luta contra o imperialismo.

Havia uma harmonia unindo Ipanema e a vida que levávamos. A arte não era uma exceção num mundo de pagodes e boçalidade. A arte era buscada, importante, traçava uma esperança; cada música composta, cada filme, nos parecia um crescimento histórico, uma sedimentação de verdades. Não sabíamos que um sórdido futuro já se tramava, debaixo de nossa euforia. Ainda éramos "modernistas" e a vida tinha um sentido. Ipanema era o caminho. E a vida de Vinicius era exemplar. Ninguém viveu assim. Vinicius era um herói existencial, um guerreiro com os pés no existencialismo do pós-guerra, acreditando em liberdade e projeto. Vinicius era um símbolo da coragem da solidão, do inconformismo, da recusa a vida burocrática. Quando ele largou o Itamaraty, desisti de fazer diplomacia, entrei para o Partido Comunista e virei cineasta.

Neste filme, vemos Vinicius nascer e amar até o fim. Sua vida parece um imenso travelling onde flutuam as mais lindas mulheres do Rio lendário que ele amou com paixão, com um ardor romântico que não conhecemos mais, hoje, nesses "acasalamentos" rápidos das revistas. O amor era eterno, mesmo se esfumando em brumas e espumas e nele tentávamos tocar alguma coisa infinita e plena, tão possível como a "revolução".

Vemos nos rostos dos atores geniais do filme, Ricardo Blat e Camila Morgado, uma fé da época, dizendo as poesias como se rezassem pela vida, vemos na extraordinária fotografia de Lauro Escorel e na direção de arte de Marcos Flaksman que eles recriaram a luz e o espaço de uma utopia lírica.

Aí, decifro outro mistério do intenso feitiço deste filme: o tempo. O tempo era outro, e me refiro a tempo como ritmo, timing . Movíamo-nos em outro ritmo, andávamos em paisagens claras, com perspectiva, percorríamos distâncias nítidas, andávamos pela praia até o Leblon. O mundo estava em foco e não era esse sumidouro de hoje. "Vinicius" não é um filme feito "hoje" sobre "antes". É um filme daquele tempo que vem nos tocar agora. O tempo do filme de Miguel é o tempo de antes. E, ao vê-lo, parece que tínhamos um futuro naquele passado, e temos a chance de sentir de novo o vento, a brisa e as batidas do mar de Ipanema.
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