O GLOBO
Estamos vivendo a maravilhosa contribuição da merda para enxergar o país. Como dizia Oswald, a "contribuição milionária de todos os erros!". É uma oportunidade única. E diante disso, temos a debandada dos intelectuais. Como explicá-la? O Brasil está entregue à ditadura da mentira, manipulada pelo governo com a conivência dos poderes, num jogo de barata-voa com as denúncias, provas cabais, evidências solares, tudo diante dos olhos impotentes da opinião pública, e os intelectuais e homens notáveis do país estão calados. Quando se manifestam isoladamente, como suspiros esparsos, folhas de outono, emitem um mal-estar "superior", um lamento dolorido.
No entanto, estamos diante da crise mais suja de nossa História, um momento gravíssimo e preciosíssimo em que aparecem dois tumores gêmeos de nossa doença: a direita do atraso e a esquerda do atraso. Esta crise é tão sintomática, tão exemplar para a mudança do país, que não podia ser desperdiçada. Esta crise é uma tomografia que mostra todas as glândulas, interstícios do corpo do Brasil — um diagnóstico completo. Homens decentes buscam uma solução que não vem, porque nossa estrutura institucional é um rio sem foz, com poderes podres desarticulando qualquer solução. Este imenso espasmo de verdade, esta brutal explosão de nossas vísceras nunca vistas antes, graças a Jefferson, talvez seja perdida porque as manobras do atraso de direita e do atraso de esquerda trabalham unidas para que a mentira vença. A verdade tem de ser tapada de qualquer jeito, para que a sólida sordidez brasileira continue como sempre foi. Quando haverá manifestações da sociedade para confrontar a ópera bufa que rola à nossa frente? As denúncias foram todas provadas e o Executivo de Lula continua negando tudo, o STF desconstrói evidências, as malandragens dos partidos esvaziam os fatos? A muralha dos poderes resiste diante das palavras. E os canalhas se sentem protegidos pelo labirinto do Judiciário.
Por que os intelectuais estão calados? Será que não vêem que o país que conquistou a democracia pode ser jogado para trás, para a velha farsa da velha política?
Os marxistas paulistas que sempre idealizaram o Lula e o PT estão quietinhos com vergonha, por terem imaginado que um operário alegórico salvaria o país. Os jornalistas que não deram um dia de sossego ao governo de FH escrevem sobre " nouvelle cuisine" francesa. Restam os angustiados. Restam os que olham em pânico o que está acontecendo e não sabem como reagir? Por quê? Tenho algumas teses. A mais ampla é que a situação atual mexe com dogmas. Isso. É como se tocasse na virgindade de Nossa Senhora.
A covardia intelectual é grande. Há o medo de ser chamado de reacionário ou careta.
Há também os "latifúndios intelectuais". Muitos acadêmicos e pensadores se agarram em seus feudos e não ousam mudá-lo. Uns são benjaminianos, outros marxistas, outros hegelianos, mestres que justificam seus salários e status acadêmico e, por isso, não podem mudar, não podem "esquecer um pouco o que escreveram" para agir. Mudar é trair para ortodoxos. Também não há coragem de admitir o óbvio: o socialismo real fracassou. Até a China já sacou. Seria uma heresia, seriam chamados de revisionistas. A força do mito da revolução sagrada é muito grande entre nós, junto com o voluntarismo e o populismo não democrático. Como escreveu Bobbio, se há uma coisa que une esquerda e direita é o ódio à democracia. Ninguém tem coragem de admitir a invencibilidade do capitalismo global. E também não abrem mão de utopias — o presente é chato, preferem o futuro imaginário. Diante de Lula, o símbolo do "povo que subiu na vida", eles capitulam. Fácil era esculhambar FH. Como espinafrar um ex-operário? É tabu. Não admitem que a categoria "povo" como coisa sagrada não existe. Tragicamente, nossos pobres são fracos, doentes, ignorantes e não são a força da natureza. Precisam de ajuda. Quem tem peito de admitir isso? Não admitem que a administração micropolítica e microeconômica de uma realidade seria muito mais progressista que velhas idéias generalistas, sobre o "todo, o uno, o futuro, o ser, a História". Mas eles não abrem mão dessa elegância ridícula e antiga. Não conseguem substituir um discurso épico por um realista. Só pensam no que deveria ser e não enfrentam o que inexoravelmente é. Preferem a paz de suas apostilas encardidas.
O mito do paraíso e do messianismo é muito forte, com sua origem religiosa. Não conseguem pensar em Weber em vez de Marx, em Sergio Buarque em vez de Florestan Fernandes, em Tocqueville em vez de Gramsci. Não entendem que o homem de "esquerda" hoje em dia tem que perder fé e esperança, que o verdadeiro progressista tem de agir sem saber o final da estrada, tem de partir do não sabido e inventar caminhos. Não entendem que não foi o PT que desmoralizou a esquerda — foi o velho pensamento de "esquerda" que destruiu o PT. Muitos caem numa nostalgia deprimida e satisfeita, pois a depressão é nobre, o charme da desilusão é chique.
Há também uma grande indigência teórica sobre o Brasil contemporâneo no mundo de hoje. Ignoram a estrutura colonial e preferem continuar com teses antigas, dizendo que o governo fracassou porque "não assumiu o conflito de classes" e não levou à frente o sarapatel do getulismo-leninismo-desenvolvimentista-chavista em que crêem. E agora é quase certo que vão acabar com o Palocci e dar um tiro no pé. Não sossegam enquanto não voltar a inflação.
Por isso, a sociedade tinha de conseguir fazer uma reforma política radical na paisagem suja. E não pode contar com as falsas promessas de partidos. Só uma uma força plebiscitária poderá mover a grande pizza maior, de modo a reformar instituições e estamentos.
Por isso, pergunto, como os antigos: quando haverá uma manifestação séria da opinião pública? Uma ação continuada de notáveis da República para impedir este jogo de carniça entre os três poderes, esta vergonha que humilha o Brasil? Vamos continuar de braços cruzados?