Se a imprensa brasileira se tivesse convencido antes de que exigir preparo de pessoas públicas não é preconceito, mas sim cobrança primeira da cidadania, com certeza não estaríamos atravessando este momento político que abala até à medula nossos fundamentos éticos, empastela nossos valores primordiais, esgarça o tecido em que temos costurado nossas belas esperanças e, sobretudo, embaralha aqueles pontos de referência pelos quais nossa juventude tem enxergado, bem ou mal, nosso espaço público - fazendo-a vê-lo, agora, como uma gelatina moral, em que a esperteza substitui o esforço do aprendizado, a jogada emocional toma o lugar da coerência racional e a generosidade social se torna uma pura impostura, um disfarce mal ajambrado de vazias, medíocres, mas desmedidas ambições de poder.
Nas duas últimas palestras que fiz fui interrogado sobre a complacência que os jornalistas sempre tiveram em relação a Lula e ao PT. E o exemplo que mais invocavam era o da recente entrevista do presidente no programa Roda Viva, da TV Cultura. Disseram que foi um despropósito a emissora ter "negociado seis meses" com o Planalto - como fartamente divulgado - para a obtenção daquela entrevista, pois numa democracia jornalistas não "negociam" entrevistas, sob pena de entrevistadores e entrevistados terem a credibilidade comprometida pela suspeita de perguntas previamente permitidas (quando não encomendadas).
Rechacei de pronto a hipótese de que um programa daquele nível - do qual já participei várias vezes desde seu início, há 18 anos -, assim como entrevistadores daquela qualidade profissional pudessem submeter-se a uma transigência dessa espécie. Mas insistiram com as perguntas: então o que haveria, no caso, para ser negociado durante seis meses? Por que apenas um dos entrevistadores pertencia à chamada "grande imprensa" - justamente o que mais apertou o entrevistado com réplicas pertinentes? Por que a maioria deles fazia contínuos meneios de concordância com a cabeça (coisa nunca vista em coletivas), qual "vaquinhas de presépio" sincronizadas, mesmo quando o presidente dava respostas robustamente inconvincentes, logicamente desarticuladas e factualmente inverossímeis?
E continuaram com as incômodas perguntas: como se explicava o inacreditável silêncio dos entrevistadores, tendo o presidente Lula dito, mais de uma vez, que Roberto Jefferson só foi cassado porque não conseguiu provar a existência do mensalão, quando ocorreu justamente o contrário, pois ele foi cassado porque provou ter participado do mensalão - confirmando, assim, a existência do espúrio sistema de compra de votos parlamentares?
E seguiram, sem piedade: como se explicava o fato de o apresentador, já no fim do programa, quase pedir desculpas para fazer uma simples pergunta (justificando-a, para que não dissessem que ali havia perguntas proibidas) e só então indagar sobre o presente milionário recebido pelo jovem filho do presidente, o investimento de US$ 5 milhões, e a sociedade a ele ofertada por uma grande empresa de telecomunicações (participante de licitações do governo), e de todos terem aceitado, tranqüila e timidamente, as estapafúrdias explicações presidenciais, que apenas se referiam às dezenas de contratos "legais" da empresa investidora, "aprovados pela CVM" (que tinha isso que ver com tráfico nepotista de influência?), ou ao sucesso de audiência da empresa na TV (batendo uma concorrente), ou, quando foram mencionados os fundos de pensão dela participantes, não dando o entrevistado importância alguma ao fato, porque "todos sabem como foram feitas as privatizações" (não tendo ninguém ali na roda enrubescido ou, pelo menos, exclamado um "arre!")?
Bem, achei melhor voltar ao tema principal das palestras e falar da importância da Primeira Emenda à Constituição norte-americana, fundamento jurídico germinal da liberdade de imprensa das democracias contemporâneas, e de sua interpretação, dada pela Suprema Corte, no famoso caso Red Lion, de 1969, que esclarecia a enteléquia da liberdade de expressão, nem sempre captada entre nós: não se trata do direito de o jornalista informar, mas do direito da sociedade de ser informada. E em relação a esse sagrado direito social, vigente apenas nas verdadeiras democracias, não cabe a nenhum profissional da comunicação transigir, mitigar a cobrança da opinião pública, calibrar a intensidade crítica da sociedade ou colocar-se como anteparo da indignação popular ante os detentores de poder, como se lhe coubesse filtrar, e não potencializar, a consciência crítica coletiva.
É claro que a imprensa não pode assumir toda a culpa pelo politicorretismo crônico, cheio de medo de ter preconceito, que embalou os mais amplos setores de nossa sociedade, levando-os a fazer vista grossa ante os sinais mais notórios de incompetência administrativa, de preguiça cognoscitiva (ou mental, mesmo), de desarticulação programática, de inanição de projetos, que levou um grupo de espertos a conquistar o poder sem saber o que depois fazer com ele - a não ser organizar-se (desastradamente, aliás) para nele tentar permanecer. Intelectuais, empresários, artistas, industriais, uma classe média deslumbrada ante a perspectiva de um líder carismático, sem nenhuma experiência administrativa e quase orgulhoso de seu horror pela leitura, comandar os destinos do Brasil, tudo isso contribuiu para turbinar o politicorretismo caboclo, ao qual nossa imprensa (com as honrosas exceções de praxe) se tem mantido fiel. Até quando?