O GLOBO
A oposição está criando uma crise política inexistente ao classificar de ingerência a decisão do Supremo Tribunal Federal de aceitar julgar um mandado de segurança do deputado José Dirceu pedindo a anulação de seu processo de cassação. O Supremo é o guardião da Constituição contra violações do Legislativo, do Executivo e do próprio Judiciário e, como dizia o ex-senador e jurista gaúcho Paulo Brossard, tem o direito de errar por último.
O ministro Celso de Mello definiu muito bem a situação: não há como se falar em questões internas quando estão em jogo direitos e garantias individuais fundamentais.
A tônica da sessão de quarta-feira do STF foi a defesa da democracia, e mesmo os cinco juízes que votaram contra Dirceu o fizeram porque entenderam que o amplo direito de defesa e o contraditório lhe foram garantidos no processo do Conselho de Ética. Censurar o Supremo por usar o Código de Processo Penal como parâmetro para o julgamento do Conselho de Ética é um equívoco, pois ele já é usado em assuntos parlamentares, comissões de inquéritos, e em casos de punições de parlamentares, por determinação do próprio regimento interno da Câmara.
Além do mais, como salientaram vários ministros, a Constituição de 1988, no artigo 5, inciso 55, assegurou aos litigantes de processo judicial ou administrativo a ampla defesa e o contraditório, nos mesmos moldes do Código de Processo Penal. Na verdade, em todas as esferas administrativas o contraditório e o amplo direito de defesa já faziam parte do devido processo legal, mas a questão, tendo sido explicitada na Constituição, justifica mais ainda a interferência do Supremo.
O deputado Miro Teixeira lembra que reclamar do recurso ao Supremo Tribunal Federal contra a violação de direitos individuais é voltar aos tempos do regime militar, que colocou na Constituição de 1969 a vedação de apreciação pelo Poder Judiciário das punições resultantes dos atos institucionais. Lembra também que a CPI dos Bingos está instalada por uma decisão do Supremo, a quem a oposição recorreu de uma decisão da Mesa do Senado.
O fato de o Supremo garantir a um parlamentar que está sendo julgado por uma Comissão da Câmara ou do Senado direitos que eventualmente estejam sendo violados não transforma esse parlamentar em vítima de perseguição política, como quer fazer crer o deputado José Dirceu. A tendência da Câmara continua sendo a de cassar seu mandato, embora ele alegue que não há provas de sua participação.
Além dos testemunhos diversos, de Roberto Jefferson a Valdemar da Costa Netto, que têm a credibilidade dos cúmplices, todos no Congresso sabem exatamente o que José Dirceu andou fazendo quando era chefe da Casa Civil da Presidência. Paradoxalmente, Dirceu está se utilizando de instrumentos da democracia para se defender da acusação de ter solapado essa mesma democracia, através da corrupção dos partidos políticos. Seus inúmeros recursos à Justiça, no entanto, certamente ajudarão a que os processos dentro do Congresso sejam aperfeiçoados, não dando margem exatamente a alegações politizadas como as de Dirceu no momento.
Outro político-jurista, Djalma Marinho, costumava dizer que "até Lúcifer" tem direito de defesa. Há inclusive precedentes: no julgamento do deputado federal de Rondônia Jabes Rabelo, em 1991, acusado de ser traficante, a Câmara decidiu que em suas sessões só falariam deputados. Um mandado de segurança contra a decisão da Mesa foi impetrado no Supremo, que mandou que se desse acesso ao advogado à tribuna. Essa decisão virou norma a partir daí, e recentemente viu-se o advogado do deputado Roberto Jefferson fazer sua defesa da tribuna da Câmara momentos antes de ele ser cassado.
Outra acusação equivocada da oposição diz respeito ao fato de o presidente do Supremo, ministro Nelson Jobim, ter votado antes do último ministro, dando o empate teórico a favor de Dirceu. Acontece que o presidente do Supremo vota sempre que se trata de matéria constitucional, e vota por último na sessão, e não apenas para dar o chamado voto de Minerva.
A interpretação de que Jobim teria dado um voto "político" fez com que até mesmo um pedido ridículo, que acabou não vingando, fosse sugerido: o de um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal pedindo a reinterpretação do voto do ministro Cezar Peluso sobre o processo de cassação do deputado José Dirceu (PT-SP). Isso porque o ministro Peluso votou a favor de que fossem retirados do relatório final as partes referentes ao depoimento de Kátia Rabelo, presidente do Banco Rural, que incriminou José Dirceu e foi dado por último, sem que à defesa tivesse sido dado o direito, como queria, de reinquirir suas testemunhas para contraditar o depoimento da presidente do Banco Rural.
Por ele, no entanto, o processo de cassação poderia continuar. Os demais ministros votaram a favor da reinquirição das testemunhas, fazendo o processo de cassação no Conselho de Ética retroagir. A oposição acha que o voto de Peluso, por ser diferente, não deveria ser contado juntamente com os outros quatro, o que daria a derrota de Dirceu por 5 a 4. O pedido de reinterpretação é desnecessário, porém, porque o próprio ministro Peluso estava presente na sessão e não discordou de Jobim quando este anunciou o empate. E ontem divulgou nota dizendo que seu voto foi interpretado corretamente pelo presidente do Supremo.
Se o voto do ministro Sepúlveda Pertence, que não compareceu ao julgamento por estar doente, for favorável a Dirceu — o que é muito provável — o Supremo terá que decidir se o processo volta ao Conselho de Ética para novos depoimentos e novo relatório, ou se é suficiente retirar do relatório as referências ao depoimento de Kátia Rabelo, conforme o voto do ministro Peluso. Isso se nenhum ministro alterar seu voto.
Entrevista:O Estado inteligente
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