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Diz-se que Carlos Lacerda afirmou que governar é saber demitir. Não sei se era um método ou mero efeito retórico.
Conheço exemplos de como governaram presidentes do ciclo militar. Um se refere ao governo do general Ernesto Geisel. Era ministro da Indústria e Comércio Severo Gomes, que discordava da política econômica do talentoso e íntegro Mário Simonsen. Numa reunião social, presentes amigos do governo, em que o uísque corria solto, Severo carregou nas críticas. Um prato para os intrigantes, que ouviram o desabafo do companheiro de tertúlia. Vazaram-no para a imprensa. O presidente Geisel ouviu o ministro Severo, que, dignamente, confirmou o que dissera. Foi demitido. Oficial de Estado-Maior, Geisel trazia da caserna o princípio do respeito à decisão. Antes dela, o general ouve, admite e até estimula a divergência de pensamento de seus oficiais em reuniões de Estado-Maior. Uma vez tomada a decisão, quem for vencido cede, pelo que se chama de "disciplina intelectual", e todos se empenham para fazer prosperar a decisão do chefe. Ele não admitia, no governo, que os ministros querelassem publicamente, insurgindo-se contra a política de governo adotada.
No governo Emílio Garrastazu Médici, descreve, no seu excelente livro de memórias Na Diplomacia o Traço Todo da Vida, o admirável embaixador Mário Gibson Barbosa, dois episódios que mostram como procedeu Médici. O general Ernesto Geisel presidia a Petrobrás. Visando a aumentar a eficiência da empresa, cogitou de associar-se a Portugal na exploração de petróleo, na colônia de Angola, em Cabinda. Certo de que a descolonização se daria em breve, e em face da política adotada pelo governo, de aproximação com a África, Gibson foi contra a associação com Portugal no petróleo de Angola. Médici ouviu os argumentos de ambos e deu, rápido, a solução. Descreve o livro: "Dou razão ao ministro das Relações Exteriores. Este assunto não será mais tratado - decidiu Médici." Tinha sido uma discordância interna e eventual, como se dá em reunião de Estado-Maior. E Geisel observou o princípio da disciplina intelectual. Esqueceu a associação com Portugal.
Outra passagem das memórias de Gibson é ainda mais ilustrativa da maneira de chefiar de Médici. O assessor internacional do ministro Delfim Netto, da Fazenda, fez publicar declaração de que "o Brasil deveria penetrar na África através das províncias ultramarinas portuguesas, e que Portugal concederia facilidades ao Brasil nas transações comerciais". A declaração, ainda que não fosse do ministro Delfim, chocava-se com as diretrizes do Itamaraty, aprovadas pelo presidente. Ademais, o ministro Gibson estava com viagem marcada dentro de poucos dias mais para a África, para tentar aproximação com países, todos eles contrários à política externa lusitana, o que o presidente havia aprovado. Estava criado um enorme problema para o ministro das Relações Exteriores, e uma insensatez a viagem. Gibson, depois de esperar que Delfim desautorizasse seu assessor, ou que o governo o fizesse - o que não se deu -, convocou a imprensa e ele mesmo leu a nota entregue aos jornais, que em essencial dizia que "as declarações sobre política externa feitas pelo assessor internacional do Ministério da Fazenda representam sua exclusiva opinião pessoal, pois é ao presidente da República que cabe definir essa política e ao Itamaraty executá-la". A imprensa agravou as manchetes: Crise Gibson-Delfim e Gibson vira a mesa.
No despacho seguinte com o presidente, este disse a Gibson que não gostara da nota do secretário-geral do Itamaraty. O ministro o interrompeu: a nota era dele - disse - e jamais admitiria que o secretário-geral fizesse uma declaração daquela gravidade. Em seguida, após um diálogo áspero, em que o presidente reprovava que se trouxesse a público grave divergência entre dois ministros seus, Gibson pediu demissão. Médici negou: "Mas eu não estou pedindo a sua demissão. Eu quero ficar com os dois." Gibson, não satisfeito, insistiu na demissão: "Conserve o ministro Delfim e me deixe sair." Chegou a dizer ao presidente: "Agora estou falando com o senhor de homem para homem. O senhor tem a sua dignidade e eu tenho a minha. O senhor não me expulsou do Ministério. Eu saí porque quis." Médici - diz o livro de Gibson - teve então um gesto de grandeza. "Sorriu, para minha surpresa, bateu-me no joelho e me disse: 'Você é um pernambucano de sangue muito quente. Eu nunca imaginei que em Pernambuco fosse assim. É pior que no Rio Grande. Não, não vai sair ninguém.'" Ficaram ambos, como ele desejava, e não mais o assunto voltou à imprensa.
Vivi, também eu, um problema igual. Desta feita, uma discordância com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Não era novidade, mas pela primeira vez vazou para a imprensa. Veio ver-me, no meu gabinete no Ministério da Educação (MEC) o ministro Leitão de Abreu, chefe da Casa Civil. Disse-me do desagrado do presidente com o noticiário dos jornais. Tive reação igual à que teve Gibson. Disse ao doutor Leitão que era mais fácil o presidente escolher um novo ministro da Educação que um novo chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI). Demitia-me. Leitão de Abreu obtemperou: "O presidente quer manter ambos ou demite os dois se não se reconciliarem e evitarem qualquer manifestação pública."
As disputas públicas reiteradas entre a ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, e o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, me fazem lembrar o estilo Lacerda, Geisel e Médici, mas a prática sindical é diferente.